Folha de S. Paulo
A patranhas com o ICMS e Carf fabricaram
uma escandalosa elisão fiscal
Essa semana foi pródiga em evidências de
que há uma diferença nada singela entre o interesse público e os donos da
pauta. Estes já estiveram mais próximos daqueles, mas as divergências no país,
no governo Bolsonaro,
já me manifestei a respeito no rádio e em vídeo,
passaram por um processo de infantilização e voltaram a formas primitivas de
exercício da vontade. A criança, como sabem mães e pais, não costuma se
contentar só com parte da satisfação do seu desejo. É tudo ou berreiro. Com o
tempo, aprende a negociar. Mas nem sempre acontece.
Assim estamos no "debate econômico" —ou que nome tenha o que parece, às vezes, uma revolta da creche. Como os infantes aqui servem apenas à ilustração, não se trata de uma representação perfeita dos fatos. Os mais assertivos, nessa área, podem se manifestar na forma de birrentos barbados, pelos já encanecidos muitas vezes, apartados daquela liberdade tardia e sem paixões com que o pastor Títiro, na Primeira "Bucólica", de Virgílio, vê cair, um tanto melancólico, os fios brancos do rosto.
Andei revisitando tudo o que escrevemos
—"nós", da imprensa— em dois anos importantes para as finanças
públicas —ou para seu desequilíbrio. Sei que esse pronome é genérico demais,
junta gente demais, reúne desiguais demais. Se puder, no entanto, representar
uma espécie de coro da tragédia ou de voz pública, vamos caminhando. Um coro da
imprudência, bem entendido.
Onde estávamos quando, em 2020, o
governo Bolsonaro e Paulo Guedes promoveram
o fim do voto de qualidade no Carf (Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais)? Em carta a Fernando
Haddad, como noticiou este jornal, Grace Perez-Navarro, diretora do Centro
de Política e Administração Tributária da OCDE, afirmou
não haver nada semelhante no mundo. Nos outros países do planeta, "as
revisões são realizadas por funcionários do governo da administração tributária
ou do Ministério das Finanças".
Ela também expressou estupefação com o fato
de que, ainda assim, se a empresa perder o pleito no Carf, o que hoje é quase
impossível, pode recorrer à Justiça, o que o governo está impedido de fazer.
Desde que se operou a mudança, sob o nosso quase silêncio cúmplice, o Estado
(com as vênias por empregar a palavra) perdeu todas. Deixam-se de arrecadar R$
60 bilhões por ano, estima-se.
O governo Lula tentou
resgatar o voto de qualidade —o interesse público desempata a contenda— numa
medida provisória. Fez-se um escarcéu. "Insegurança jurídica!",
gritou-se. As pressões resultaram numa tentativa de acordo que pode gerar outro
modelo único, mas menos pernicioso: o poder público retoma a prerrogativa da
decisão, mas livra o sonegador de multa e juros. O crime tributário, pois,
continuará a compensar.
Onde estávamos quando se introduziram
patranhas na Lei Complementar 160, em 2017, e se inventou uma outra espetacular
jabuticaba do nativismo sonegador, com a criação do "bis in idem" da
não tributação? Em síntese, a Justiça já tinha pacificado a não cobrança de
IRPJ (Imposto de Renda de Pessoa Jurídica) e CSLL (Contribuição Social Sobre
Lucro Líquido), impostos federais, para quem declara ter recolhido 14% de ICMS,
embora tenha pagado só 10% —é um exemplo ilustrativo—, com a condição de que a
diferença se transforme em investimento. Tem lá seu aspecto polêmico porque o
incentivo dado pelo Estado, sem consultar ninguém, impacta a Federação. Mas vá
lá.
Desde 2017, os espertalhões pegam aqueles
4% e o direcionaram para o caixa —para custeio e afins—, não investem um
centavo e, ainda assim, essa parcela continuou isenta de IRPJ e CSLL. Demos à
luz a sonegação em cascata. O absurdo tem preço: uns R$ 90 bilhões ao ano. Por
9 a 0, a 1ª Seção do STJ apontou a ilegalidade —escandalosa, diga-se— de tal
prática. Um André Mendonça apareceu no meio do caminho, mas penso que sua
liminar vai cair.
Chega-se, iluminando-se apenas dois porões
tributários, a uma elisão fiscal de R$ 150 bilhões. Mas aquelas crianças
crescidas, apegadas a suas ideias fixas, cobram o corte severo de gastos, o que
certamente tornaria ainda pior a vida dos pobres. À diferença de Títiro, ainda
não se libertaram das paixões. Como poetas não são, trata-se de interesses.
Alguns são até bem mesquinhos, apesar de aparente robustez teórica.
Azevedo azedando tudo,rs.
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