Folha de S. Paulo
Agro e evangélicos se transformaram em
formidáveis forças eleitorais
Imagino que aos velhos companheiros dos
movimentos sociais, que têm os ouvidos do presidente, pareça natural que o agro
goste da direita enquanto o MST prefere a esquerda, ou que os conservadores
religiosos votem até na extrema direita, mas não em Lula. A insistência nessa
hostilidade, contudo, não me parece pragmaticamente vantajosa para um governo
de esquerda. Por algumas razões.
A primeira é que o agro e os evangélicos se transformaram em formidáveis forças eleitorais. Foram dois dos segmentos mais importantes para a vitória de Bolsonaro em 2018 e para a proeza da sua quase reeleição. Basta ver os mapas eleitorais para constatar a força do antipetismo em estados e municípios em que o agronegócio domina; basta consultar as sondagens sobre intenções de voto estratificadas por religião para ver a fidelidade eleitoral a Bolsonaro da base evangélica conservadora.
A segunda razão é que, embora tenham
perdido a eleição presidencial, formaram uma consistente rede de mandatos que
domina as casas legislativas municipais, estaduais e federais numa proporção
sem precedentes, sem contar as prefeituras e até governos estaduais. Por essa
razão, o PT, mesmo tendo a Presidência, até hoje não sabe o que fazer para
governar sem ter certeza de obter uma maioria simples na Câmara dos Deputados.
A terceira razão é que chamá-los de
"setor do agronegócio" ou "grupos religiosos conservadores"
é subestimar em muito aquilo em que se transformaram. Ao redor do agronegócio e
das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, formaram-se comunidades
de sentimento e identidade e uma cultura política, com significados e valores
socialmente compartilhados. A aversão à esquerda é parte dessa cultura.
Por fim, esses dois segmentos políticos
prosperaram no bolsonarismo e continuam prósperos, apesar de o bolsonarismo
estar em baixa. Crescem a cada legislatura as bancadas dedicadas aos interesses
do agro ou à agenda religiosa conservadora —o boi e a Bíblia, como dizem seus
detratores. Nada sinaliza o enfraquecimento das duas forças como apontadores e
organizadores do voto popular e grandes formadores de bancadas temáticas, em
contraste com o declínio dos sindicatos e das igrejas progressistas, que é
visível e contínuo desde os anos 1970.
O problema é que, enquanto a esquerda
partidária, ao governo, trabalha ou deveria trabalhar para construir pontes com
esses dois universos, a esquerda de movimentos lhes antagoniza de tal maneira
que, paradoxalmente, os torna mais fortes.
O processo, ainda em curso, por meio do
qual a esquerda brasileira vai trocando o seu foco na luta de classes por
outro, nas lutas identitárias, tem uma grande capacidade de levar água para o
moinho do conservadorismo moralista. O fim da pobreza e da miséria, por
exemplo, é uma pauta que os conservadores religiosos compram; o fim do
privilégio branco e da heteronormatividade é uma agenda que não entendem, mas
de que desconfiam; o esquecimento da opção pelos pobres para colocar como
prioridade política "as minorias historicamente oprimidas" não lhes
desce bem, principalmente quando se caracterizam as tais minorias e as suas
reivindicações e se ouvem os seus discursos. É simples assim: quanto mais
identitária for a esquerda, mais atraentes se tornam os conservadores.
Do lado do agro, dá-se algo semelhante com
o vermelho MST marchando para ocupar propriedades rurais e instituições de
pesquisa. Bolsonaro prometendo classificar o MST como movimento terrorista, em
2018 e 2019, era música para quem vive da agroindústria, enquanto a volta das
ocupações do MST soa como as trombetas do Apocalipse.
Em 2018, o MST estava para o agro como o
"kit gay" para os conservadores, era o bicho-papão das histórias que
o bolsonarismo contava. O MST e o que ele representa no imaginário do
agronegócio foram o espantalho mais eficiente do bolsonarismo para tanger a
boiada para o seu lado, tal o pavor que o movimento suscita. Imaginem agora o
poder de ativação de memórias e sentimentos, de quem já era inercialmente
antiesquerda, com um MST animado e valente, movendo-se em direção a
propriedades rurais e metendo o pé na porta da Embrapa.
Mais dia, menos dia, a esquerda ao governo
terá que lidar com o fato de que não lhe convém ser adversário do agro ou dos
evangélicos conservadores. Falta, porém, combinar essa agenda com a esquerda de
movimentos, que trabalha arduamente para semear a inimizade entre uns e outros.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Ótima coluna.
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