Folha de S. Paulo
Egiptologistas acusam minissérie de tentar
'apagar a identidade egípcia'
A protagonista da nova minissérie da
Netflix, interpretada por Adele James, é a primeira Cleópatra negra da história
do cinema, o que provocou reações indignadas do governo egípcio. Foi Adis
Abeba, capital da Etiópia, a cidade escolhida para fundar a Organização de
Unidade Africana (OUA), há 60 anos, em 25 de maio de 1963. Os dois eventos
estão conectados por uma ponte ideológica que ilumina o discurso político da
corrente principal do movimento negro.
Na fundação da OUA, os líderes dos novos países independentes renunciaram ao ideal do pan-africanismo: os Estados Unidos da África. Ao longo de décadas, nos diversos congressos pan-africanos realizados na Europa e nos EUA, prometeu-se a unidade estatal de toda a África. Assim como Bolívar imaginara uma Pátria Grande hispano-americana, o pan-africanismo sonhou com uma "Pátria Grande racial". Contudo, na hora decisiva, os dirigentes africanos preferiram a fragmentação nacional nas linhas desenhadas pelas potências europeias.
A OUA sacramentou as fronteiras coloniais,
assegurando o poder das elites políticas emanadas das independências. Mas os
ornamentos exteriores da Pátria Única precisavam ser conservados, em nome da
legitimidade histórica dos novos dirigentes estatais. Por isso, a palavra
"unidade" batizou a organização que a renegava –e, pelo mesmo motivo,
escolheu-se Adis Abeba.
A Etiópia persistiu como império
independente durante a expansão imperial europeia na África. A ideia de
"império" adaptava-se ao discurso sobre uma unidade africana despida
de influências exteriores adotado pelos novos dirigentes estatais. Menelik 2º,
imperador etíope entre 1889 e 1913, escravizou em larga escala os Oromo
subjugados no sul do país. Hailé Selassié, seu sucessor entre 1916 e 1974, foi
um monarca cristão ortodoxo festejado pela aristocracia europeia. Império,
escravismo, cristianismo? A "africanidade" ajoelhava-se diante da
tradição europeia em dissolução.
Cleópatra negra? Os egiptologistas oficiais
acusam a minissérie de tentar "apagar a identidade egípcia": a
rainha, de linhagem oriunda da Macedônia, seria "grega" e "de
pele clara". As nações são "comunidades imaginadas" pelo
nacionalismo –e o nacionalismo autoritário egípcio reivindica uma legitimidade
ancorada na Grécia Antiga e refinada pela civilização árabe. Por isso, o Estado
egípcio rejeita o projeto ideológico de "africanização" do Egito.
Qual era a cor da pele de Cleópatra? O
debate, inspirado pelo "racismo científico", é um anacronismo: no
Egito Antigo, pouco importava a cor da pele. A pergunta não tem resposta. Mais
de dois séculos separam a rainha de seus ancestrais macedônios e o império
egípcio estendeu-se pelo Sudão. Investigações imprecisas levantam a hipótese de
que a princesa Arsinoe, meia-irmã e rival de Cleópatra, tivesse feições
negro-africanas.
Thina Garavi, diretora da minissérie, não
aposta na negritude da rainha, mas na potência ideológica da proposta:
"Por que algumas pessoas necessitam uma Cleópatra branca?". A
pergunta faz sentido –mas a indagação simétrica também. Por que o identitarismo
racial necessita uma Cleópatra negra? O empreendimento de
"africanização" do Egito Antigo espraiou-se pelo movimento negro.
Seguindo uma regra da política identitária racial, trata-se de conduzir guerras
simbólicas contra o imperialismo e a "branquitude ocidental".
Só que, como no caso da escolha de Adis
Abeba, o modelo almejado é um reflexo especular do cânone europeu do século 19.
O Egito Antigo era um império centralizado cuja força produtiva baseava-se em
massas de trabalhadores submetidos à servidão ou escravizados.
"Eu estou pedindo aos egípcios que se
enxerguem como africanos", explica Garavi. Ok –mas a solicitação implica
pedir ao movimento negro que aceite o imperialismo e a escravidão como partes
da tradição africana.
Demétrio demetriando.
ResponderExcluirE vc escrevendo besteiras...Petralha?
ResponderExcluirMAM
"Ok –mas a solicitação implica pedir ao movimento negro que aceite o imperialismo e a escravidão como partes da tradição africana."
ResponderExcluirPois é. Não aceitará jamais.
MAM