sábado, 20 de maio de 2023

Pablo Ortellado - Nem tudo o que pode, a gente deve fazer

O Globo

Léo Lins faz um tipo de humor de péssimo gosto, que se caracteriza por ser especialmente ofensivo

Léo Lins é um comediante que se especializou num tipo de humor ácido, ofensivo e sem limites. Faz piada com nordestinos, gordos, velhos, mudos e negros e não foge de temas tabus, como pedofilia ou Holocausto.

Na última quinta-feira, uma decisão da Justiça de São Paulo, a pedido do Ministério Público, determinou que o comediante deixe de veicular, retire do ar e deixe de comentar conteúdo que deprecie ou humilhe minorias ou pessoas vulneráveis. A determinação levou seu show “Perturbador”, que alcançara mais de 3 milhões de visualizações, a ser retirado do YouTube. Lins também está proibido de se ausentar de São Paulo por mais de dez dias, o que o impede de sair em turnê.

A decisão levantou um importante debate sobre a liberdade de expressão e seus limites, as regras que devem valer para a sátira e o humor e a alteração da lei do crime racial, que ampliou a pena para o que se convencionou chamar de “racismo recreativo”.

Não sabemos que passagens do show motivaram a ação do Ministério Público, mas podemos olhar para alguns trechos que a imprensa destacou e que ilustram bem sua forma de fazer humor. Numa delas, acusada de racismo, ele diz o seguinte:

— Negro não consegue achar emprego, mas na época da escravidão já nascia empregado e também achava ruim.

Noutra, considerada pedofilia, diz:

— Pra perder a virgindade, a menina do campo só precisa correr menos que o tio.

Numa última, em que é acusado de preconceito, afirma que “o Nordeste tem cidades tão pobres que as crianças da África mandam comida para lá”.

No final de “Perturbador”, Lins defende sua forma de fazer comédia. Diz que o humor ajuda a pôr as coisas em perspectiva e permite rir do que antes causava dor. Embora reconheça que isso não vale para todos e que, para alguns, certo tipo de humor apenas traz sofrimento, acredita que a dor de alguns não deveria impedir o riso dos outros. Afirma que a melhor maneira de regular esse conflito é os mais sensíveis não irem a um espetáculo como o dele.

Os críticos de Lins são muitos e salientam que esse tipo de humor ri dos mais fracos e vulneráveis e, quando não é diretamente preconceituoso — e, portanto, criminoso —, ajuda a fomentar uma cultura racista.

O tema é delicado porque envolve um conflito entre a proteção da dignidade humana e a liberdade de expressão. Como regra, a liberdade de expressão deve encontrar seus limites na observância dos direitos humanos. Mas nem sempre é claro o ponto em que esse limite é alcançado — menos ainda numa sociedade que polarizou o tema dos limites da liberdade de expressão. O que para alguns é preconceito claro, para outros é um comentário jocoso sobre uma situação.

Os conservadores têm visto certas leis ou a aplicação de certas leis como motivadas pela cultura “politicamente correta”, que, no seu modo de ver, é uma hipersensibilidade progressista. Lins sabe disso e, como outros humoristas, construiu a carreira desafiando o politicamente correto.

A situação fica ainda mais complicada por se tratar de humor, domínio que, pela própria natureza, explora os limites da liberdade de expressão. Tradicionalmente, ao discurso satírico são permitidas liberdades que não são toleradas no discurso “sério”. Mas o Projeto de Lei que recentemente ampliou penalidades para o racismo recreativo fez o caminho oposto. Ampliou a pena para discurso que venha a ser considerado racista “quando ocorre em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”.

A solução para esse tipo de conflito me parece ser separar o que mais indiscutivelmente é crime do que é eticamente questionável. Para discursos que claramente configuram racismo ou homofobia, devemos aplicar a lei. Para outros casos, devemos fazer o debate público questionando a ética do humor. Nem tudo o que a gente pode, a gente deve fazer. Há coisas que podem ser legais, mas não são apropriadas.

Lins faz um tipo de humor de péssimo gosto, que se caracteriza por ser especialmente ofensivo. Ele diz que ofende todo mundo, mas seu alvo preferencial são os mais fracos. Diz que ri dos nordestinos, mas ri também dos sulistas. Porém sua piada com os sulistas é que são tão educados que, quando são sequestrados, querem dividir o aluguel com os bandidos. Será que a “ofensa” aos sulistas é equiparável à ofensa aos nordestinos, que, noutra piada, são apresentados com apenas 72% do DNA humano?

Não vejo tantos problemas em existir um tipo de humor que consegue fazer piada das situações mais difíceis, mas me incomoda eticamente que esse humor só ria dos ferrados.

 

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