segunda-feira, 29 de maio de 2023

Demétrio Magnoli - Quando o inferno é a realidade

O Globo

Como governar sem uma base majoritária estável?

‘O inferno são os outros.’ Jean-Paul Sartre referia-se tanto aos alemães invasores, denominados “os outros” pelos franceses na guerra mundial, como ao julgamento dos demais, que constrange a liberdade de pensar. Menos filosófico, Lula também tem seus “outros”, que são a maioria do Congresso. Como governar sem uma base majoritária estável? Eis a pergunta que o atormentou nos seus mandatos pretéritos e volta a afligi-lo no presente.

Nos sistemas parlamentares, o governo nasce de um acordo programático que lhe confere maioria segura no Parlamento. FH só precisou distribuir cargos na máquina estatal para soldar uma maioria no Congresso. É que seu programa econômico — estabilização da moeda, equilíbrio fiscal, privatizações, agências reguladoras — tinha amplo apoio político no Congresso. O PT, porém, sempre governou com um Congresso ideologicamente hostil. Decorre daí que Lula foi obrigado a expandir os limites do “presidencialismo de coalizão” além das fronteiras da legalidade.

O colunismo cortesão formulou uma lenda sobre os poderes mágicos de articulação política de Lula. Contudo, de fato, Lula 1 e Lula 2 ergueram uma base majoritária com os tijolos do “mensalão” e o concreto do “petrolão”. Por motivos óbvios, o expediente da compra direta de bancadas está interditado a Lula 3, que precisa desbravar atalhos num Congresso inclinado à direita. O inferno tornou-se mais quente e sombrio.

Nos mandatos anteriores, Lula foi impulsionado pelo vento de cauda do ciclo internacional de commodities. A liquidez global estimulava o investimento externo. Os elevados preços dos produtos básicos geravam vultosas rendas de exportação. Sua política econômica, crescentemente apoiada no gasto público, em créditos subsidiados e nos investimentos excessivos das estatais, erodia a produtividade geral da economia brasileira. Mas o ciclo virtuoso ocultava o problema de fundo, assegurando um crescimento vigoroso — e a popularidade do presidente. A base governista no Congresso tinha escassos incentivos para desafiar o Planalto.

Hoje, o inferno é a realidade. A desglobalização fragmenta a economia mundial em blocos regionais. A China ingressa em etapa de crescimento mais lento. A pandemia danificou as cadeias produtivas internacionais. Sob o impacto da guerra na Ucrânia, verifica-se persistente inflação de preços de energia e alimentos. Nos Estados Unidos, o banco central retomou a política de juros reais positivos. No lugar de vento de cauda, vento de proa.

O ciclo econômico global não propicia espaço para aventuras de expansão fiscal. Nos palanques de campanha, Lula prometeu ignorar a realidade, restaurando a “idade de ouro” dos seus mandatos prévios. Depois de subir a rampa, insistiu no mesmo discurso, evidenciando que não tem plano B. A desarticulação da base governista nominal no Congresso reflete a ausência de rumo do governo.

Lula lançou-se em campanha com uma coalizão aberta ao centro (Alckmin, Marina Silva) e recebeu apoio de um vasto espectro político na disputa do segundo turno (Tebet, MDB, economistas do Plano Real). Criou-se a oportunidade para a formação de uma frente democrática de governo sustentada por um acordo programático. Dela, surgiria uma maioria parlamentar estreita, mas coesa.

Nada feito. A escolha lulista foi governar com uma frente ampla destituída de consensos programáticos, que se estende até as franjas do bolsonarismo. Lula almeja restaurar as políticas de seus mandatos anteriores e, ao mesmo tempo, colher no Congresso votos suficientes para aprovar as emendas constitucionais que quiser. O inferno chamado realidade vem provando que são dois objetivos incompatíveis.

Bolsonaro tentou governar sem uma base parlamentar majoritária. Depois, descreveu um giro de 180 graus e construiu maioria à base do “orçamento secreto”, um esquema de corrupção legalizado que acabou impugnado pelo STF. Diante dos primeiros insucessos no Congresso, Lula ensaia retomar a prática do antecessor, revestindo-a com enfeites e disfarces. Nesse passo, planta as sementes de uma nova crise institucional.

 

Um comentário: