terça-feira, 2 de maio de 2023

Dora Kramer - Transgressão premiada

Folha de S. Paulo

Consignou-se que deputados e senadores podem infringir à vontade as regras

O ato de mentir não é um mal em si. Vai do exercício da boa educação até a prática de crueldade ou da mera desonestidade, passando às vezes pela demonstração de generosidade. A mentira anda de braço dado com a humanidade desde sempre.

Portanto, o projeto de lei que trata da circulação de notícias falsas cujo início de discussão na Câmara está marcado para esta terça-feira (2), não aborda assunto a respeito do qual nada se saiba. Na política há intimidade, excessiva até, com o tema. A novidade é o meio, as redes digitais onde a maioria ainda engatinha.

Nesse contingente majoritário reside a maior parte dos congressistas que agora têm a tarefa de estabelecer as normas pelas quais as plataformas deverão se conduzir, certamente com reflexos sobre o comportamento dos usuários.

Embora suas excelências possam ser catedráticas na produção de inverdades, são neófitas no diálogo com a modernidade. Disso dá notícia a barafunda de dissensos no ambiente em que se inicia a tramitação daquela que é uma obra em aberto à disposição de variados e poderosos lobbies.

O único consenso por ora é um elogio ao privilégio tão arcaico quanto indevido. O salvo-conduto para os parlamentares usarem da imunidade para fazer tudo aquilo que acertadamente seria vedado às empresas e aos cidadãos: a disseminação de conteúdos impróprios à convivência em sociedade.

À primeira vista pode parecer um ponto secundário, mas não é. Ao contrário, é prioritário. A fim de facilitar a aprovação, consignou-se que deputados e senadores podem infringir à vontade as regras impostas aos demais mortais sem correr riscos.

Tal licença para transgredir carimba na proposta de combate às fake news um vício de origem que a suas altezas precisam ser instadas a consertar. Sob pena de comprometerem o regulamento que, se não vale para todos, não pode valer para ninguém.

 

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