sábado, 20 de maio de 2023

Eduardo Affonso - Os votos da primeira-dama não estão nas urnas

O Globo

O que você acharia se a namorada do piloto resolvesse sugerir ajustes no plano de voo?

O que você acharia se a mulher do médico entrasse na sala de cirurgia para opinar sobre procedimentos, sedação, sutura? Se o companheiro da dentista aparecesse para dar palpite sobre ser melhor tratar o canal ou extrair o dente logo de uma vez? Se o marido do engenheiro se manifestasse sobre a posição dos pilares, porque ficou encantado com o “conceito aberto” num programa de televisão? Se a namorada do piloto resolvesse sugerir ajustes no plano de voo ou no serviço de bordo?

Pois é. Mas aqui estamos nós, discutindo as interferências da atual primeira-dama na taxação de importações e na atuação do Gabinete de Segurança Institucional — sem saber até que ponto as críticas são fruto de nosso machismo estrutural.

Já se foi o tempo em que as digníssimas esposas de presidentes, governadores e prefeitos estavam limitadas a fazer presença VIP nas cerimônias oficiais e a participar de atividades filantrópicas. Mudou o papel da mulher na sociedade, mas o das primeiras-damas não foi reescrito. Até porque se trata de uma espécie singular de função honorífica. Assim como mesários e jurados, primeiras-damas vêm com prazo de validade, não têm vínculo empregatício nem recebem remuneração. Essa não é uma função (mas um status) e tampouco honorifica (não configura homenagem às suas notórias capacidades profissionais).

Foi Marcia Tiburi quem melhor resumiu o paradoxo de essa figura continuar existindo num governo dito progressista:

— Eu acho que não combina com uma feminista ser primeira-dama. (...) Eu sairia desse lugar inessencial e subalterno e iria para um lugar de protagonismo.

A filósofa vai mais longe e aconselha a renúncia ao cargo (impossível: o cargo não existe, e a opção do divórcio parece fora de cogitação) e a “fazer alguma coisa realmente mais revolucionária” (improvável, num governo que só involui).

A mulher de um governante daria ótimo exemplo de protagonismo feminino se continuasse em sua área de atuação, onde se destaca por seus próprios méritos, não por obra dos sagrados laços do matrimônio. Sarah Kubitschek e Ruth Cardoso souberam usar a proximidade com o poder para ampliar seu legado. Uma, com os centros de reabilitação (hoje, Rede Sarah). A outra, com projetos de combate à pobreza (ajudou a criar o Comunidade Solidária, depois transformado no Fome Zero).

Com sua habitual incontinência verbal, Ciro Gomes causou enorme mal-estar ao declarar, em 2002, que “a minha companheira tem um dos papéis mais importantes, que é dormir comigo”. Por mais deselegante que tenha sido (e foi), totalmente errado ele não estava. Nas monarquias, há uma família reinante, que vira uma instituição (“A Firma”, como a chamam os britânicos); nas repúblicas, o cônjuge e a prole do governante deveriam manter com o poder relações mais... republicanas.

Margaret Thatcher, Angela Merkel e Jacinda Ardern mostraram como se separa o público do privado nas questões conjugais. Aqui, Itamar Franco e Dilma Rousseff foram prova incontestável de que o país sobrevive muito bem sem um primeiro-cônjuge.

Numa democracia, o poder é conquistado pela força do voto. E os votos da primeira-dama (ou do primeiro-cavalheiro) estão no altar, não nas urnas.

 

2 comentários: