quinta-feira, 4 de maio de 2023

Entrevista | Nina Santos: 'Nível de interferência das plataformas é absurdo'

Guilherme Caetano / O Globo

Especialista em comunicação digital e doutora pela Universidade de Paris, Nina Santos rebate a alegação da oposição na Câmara dos Deputados de que o PL das Fake News, retirado de pauta na terça-feira para últimas mudanças e negociações, criaria uma espécie de Ministério da Verdade e diz que as grandes plataformas hoje já atuam como espaços “que determinam o que vale ou não no debate público”. O termo, uma referência à obra 1984, de George Orwell, na qual existe um órgão federal responsável pelo revisionismo da história do país fictício, é usado por bolsonaristas para sugerir que uma agência reguladora — prevista inicialmente no projeto de lei — poderia ser usada para censurar os usuários. Nina, no entanto, avalia que as empresas já têm essa interferência.

Apesar de se chamar Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, o projeto ficou conhecido como PL das Fake News. Afinal, do que se trata o projeto?

Eu acho que acaba sendo um termo impreciso, porque não dá conta do que está abordado no texto. O projeto trata de vários temas: transparência, publicidade, remuneração do jornalismo. E trata também, pouco, mas trata, da questão da desinformação.

Por que a desinformação acabou em segundo plano no texto final?

A desinformação, especificamente, é uma parte bem pequena, mas precisamos considerar que os processos de desinformação são diretamente afetados por outros critérios que estão inclusos: aumentar a transparência, responsabilizar por conteúdo impulsionado, instituir parâmetros relacionados ao dever de cuidado. Tudo isso, se bem implementado, ajuda a combater a desinformação.

O PL traz esse conceito de dever de cuidado. O que significa?

Trata de temas sensíveis que precisam ser olhados com mais cuidado pelas plataformas. São, por exemplo, conteúdos relacionados a crimes contra o Estado democrático de Direito ou contra crianças e adolescentes. O texto prevê o acionamento de protocolos em situações de emergência, como o ataque do 8 de janeiro, por exemplo, o que seria inicialmente feito pelo órgão regulador — que agora não está mais no texto —, e depois revisado pelo Judiciário. E durante a vigência desse protocolo de crise, as plataformas passam não só a ter o dever de zelar por esses temas, mas poderiam ser responsabilizadas caso não o fizessem.

A previsão de uma agência reguladora foi retirada do texto. Não deveria haver um órgão com essa função?

Existe a solução ideal e a possível. A ideal, que eu defendo, é que se tenha um órgão independente, autônomo, multissetorial e novo para lidar com a questão digital. No debate público, infelizmente essa discussão que ficou sendo chamada de Ministério da Verdade acabou pegando. Essa ideia de que um órgão regulador poderia determinar o que vale ou não no debate não faz sentido. Aliás, hoje a gente já tem um espaço que determina o que vale ou não: o das grandes plataformas, que é opaco e sobre o qual a sociedade brasileira não tem controle. Criar um órgão regulador seria uma medida para a gente tentar fazer frente a esse poder que hoje as empresas têm.

A oposição fala em receio de “censura” com esse novo órgão. Essa agência poderia retirar conteúdo que julgasse inapropriado?

Não, a ideia dessa agência é que ela não atue no conteúdo individual, olhando publicação por publicação. Isso não faz nenhum sentido num ambiente democrático. Ela poderia exigir que as plataformas elaborassem um relatório sobre determinado tipo de conteúdo, como ataques a escolas. É importante que seja um órgão coletivo, com representação de vários setores da sociedade.

Por que as grandes plataformas são contra a aprovação desse PL?

Tem coisas específicas do texto como a questão da publicidade digital, que é o cerne do modelo de negócios dessas empresas. Elas não querem se tornar corresponsáveis por conteúdo publicitário, o que me parece que não faz sentido nenhum. O texto prevê algumas exigências do próprio processo da publicidade: identificar os anunciantes em um relatório, por exemplo. As empresas alegam que isso acaba gerando custos, e que esses custos tornarão a publicidade mais cara para anunciantes.

Na última semana, o Google incluiu em sua página inicial uma mensagem contra o PL, com um alerta de que a proposta iria ‘aumentar a confusão entre o que é verdade e mentira no Brasil’. Como você vê isso?

Talvez tenha sido a atitude mais grave do processo de mobilização em torno do PL. O nível de interferência que essas plataformas têm hoje no debate público brasileiro é absurdo. Essas empresas não estão apenas colocando sua opinião, o que é legítimo, mas coibindo através de suas estruturas internas que argumentos contrários sejam ouvidos. Acho que o nome disso é censura.

Alguns deputados querem empurrar a discussão do PL para o STF decidir. O que pode acontecer se essa regulação vier do Poder Judiciário?

É ruim porque passa a ser mais uma instância de judicialização da política, mais uma decisão que não é baseada na construção ampla de legislação debatida pela sociedade.

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