O Estado de S. Paulo
A empresa não deveria se arvorar a conduzir os processos decisórios internos da nossa democracia. Alguma coisa está fora de ordem, fora de lugar, fora de prumo
Agente já conhecia o Google Translator
(vulgo “Tradutor”), o Google Meet, o Google Calendar, o Google Isso e o Google
Aquilo. São muitos, sortidos, como as diversas cabeças de uma hidra esperta.
Agora, no transcurso do feriadão de Primeiro de Maio, o Brasil foi apresentado
ao Google Eleitor. Este é o tal que toma parte em processos decisórios de uma
nação soberana – a saber, o Brasil. Interfere abertamente numa deliberação que
deveria se restringir aos eleitores desta terra e aos seus representantes no Parlamento.
O Google Eleitor é meio entrão: exerce a cidadania que, até a semana passada,
não tinha.
Agora, tem. Todo mundo viu. Nestes dias, conforme a Câmara dos Deputados se aproximava da data de votação do Projeto de Lei 2.630 (o PL das Fake News), marcada para terça passada, dia 2 de maio, as redes sociais se excitaram desbragadamente. As borbulhas cívicas foram além do costumeiro bate-boca entre seres humanos, robôs e seres desumanos. As próprias plataformas começaram a agir como se fossem lobistas, e isso sem disfarces. Então, o maior site de buscas em atividade no País tomou partido. “O Google colocou em sua página inicial um link para o artigo contra a proposta”, registrou este diário na sua primeira página de anteontem.
Isso mesmo. Numa conduta atípica,
inesperada e chantagista, o oráculo digital planetário entrou com tudo na
campanha para derrubar a data de votação do PL, e o mais incrível é que
conseguiu. Levou a melhor. Na própria terça, o presidente da Câmara, Arthur
Lira (PP-AL), anunciou o adiamento da pauta. Foi um anticlímax. A proprietária
do Google, chamada Alphabet, que também é dona do YouTube, assumiu a liderança
do cordão histriônico e burlesco daquele pessoal que fala contra a censura
enquanto milita para liquidar a liberdade e os direitos alheios. Não, isso não
era comum nestas plagas.
Agora, estamos numa cena difícil de
explicar e ainda mais difícil de entender. A Inteligência Artificial parece ter
aprendido que o Brasil, que nunca foi para principiantes, está aí ao sabor dos
caprichos de agentes traquejados, mesmo quando estrangeiros natos. Melhor
dizendo, a Inteligência Artificial ascendeu à iluminação de saber que para os
aventureiros digitais está aberta a temporada de lançar mão dos destinos desta
terra.
Isso posto, ficam as perguntas que não
querem silenciar. A famosa plataforma vai interferir nas eleições para
prefeito, no ano que vem? Vai apostar em alguns postulantes à vereança, em
detrimento de outras candidaturas? E em 2026, vai favorecer presidenciáveis?
Até onde chegarão os tentáculos do Google Eleitor?
Você pode ter suas críticas ao PL 2.630, em
que encontramos até erro de pontuação. O projeto tem acertos, amplamente
reconhecidos, mas não está livre de falhas. Portanto, você pode dizer que, na
redação dos artigos que deveriam ir à votação em plenário anteontem, deputados
e senadores foram contemplados com proteções demais, enquanto gente sem mandato
ficou à mercê de controles um tanto insondáveis. Você também pode alegar que há
conceitos vagos no texto legal, assim como poderá observar que faz falta uma
agência reguladora com mandato, competência e alcance claramente demarcados.
Enfim, você pode mesmo estar em desacordo frontal com o famigerado PL 2.630,
mas não poderá negar, nem mesmo você, que este negócio de uma gigante do capitalismo
digital, uma big tech com sede nos Estados Unidos, cerrar fileiras com próceres
do bolsonarismo tardio numa polêmica pública, que fere o nervo do interesse
nacional, é pra lá de esquisito. Será que a Nação não poderia resolver sozinha
mais essa encruzilhada de seu destino? Será que nós, brasileiros, precisamos
ser tutelados por um conglomerado monopolista global?
E não é só. O que o Google levou a público
no Primeiro de Maio foi um editorial opinativo, como se fosse um jornal comum.
Agiu como se fosse imprensa – justo ele, que vive de arguir, em sua defesa, que
não tem nada de imprensa e que, por isso, não pode arcar com responsabilizações
editoriais. Sim, desta vez a superplataforma se comportou como um diário
convencional.
Isso acrescenta novos complicadores à nossa
equação constrangedora. As democracias têm o hábito de confiar a mediação do
debate público – função classicamente exercida pelos meios de comunicação – a
quem tem a nacionalidade daquele país. Nada mais óbvio. As decisões internas de
uma sociedade nacional e de um Estado devem ficar a cargo de quem nasceu lá,
mora lá e pretende seguir vivendo lá.
No Brasil, a mesma cautela aparece no
artigo 222 da Constituição federal: “A propriedade de empresa jornalística e de
radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou
naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sede no País”. Isso não quer dizer, é claro, que
o Google não possa atuar no Brasil; quer apenas dizer que ele não deveria se
arvorar a conduzir os processos decisórios internos da nossa democracia. Alguma
coisa está fora de ordem, fora de lugar, fora de prumo.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
O Google,quem diria!
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