quinta-feira, 11 de maio de 2023

Felipe Salto* - Raskólnikov e o novo arcabouço fiscal

O Estado de S. Paulo

Em ‘Crime e Castigo’, o personagem converge à redenção. O PT, hoje uma pedra no sapato do Ministério da Fazenda do seu próprio governo, precisa inspirar-se nesse mote e começar a ajudar

Confesso que gosto deste termo: arcabouço fiscal. É que ele remete a estrutura, conjunto de normas a balizar comportamentos. Na Warren Rena, projetamos a dívida e o déficit após a apresentação do tal arcabouço. As contas melhoraram, mas a proposta poderia ganhar mais corpulência. Os erros passados seriam suplantados por este novo compromisso, desde que genuíno, como o de Raskólnikov.

No cenário-base, projetamos déficit primário (receita menos despesa sem contar juros da dívida) de 1,1% do PIB, em 2023, e de 1%, no ano que vem. Portanto, a meta de zerar o déficit em 2024 seria rompida, levando ao acionamento do gatilho previsto no art. 9.º-A introduzido pela proposta do arcabouço na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Esse gatilho reduz a taxa de crescimento do limite de despesas. No lugar de crescer a 70% da variação porcentual real da receita líquida até junho, o gasto só poderá aumentar 50% dessa taxa. Ao simular o efeito da medida, os déficits estimados remanescem, mas em clara trajetória de melhora, até passar ao azul em 2031. Partindo de 1,0%, em 2024, o déficit cai a 0,9%, em 2027; a 0,7%, em 2028; a 0,4%, em 2029; e a 0,3% do PIB, em 2030, sendo zerado em 2031.

As projeções consideram que o PIB crescerá a 1,4%, em 2024, acelerando a 1,8% até 2026. Situar-se-ia em 2% ao ano na média de 2027 a 2032. Os juros reais sairiam de mais de 7,5% para algo como 4,5% e, no período final, para menos de 4% ao ano. A pressuposição é de que os juros nominais seriam menores na presença de uma regra fiscal crível, com inflação sob controle (convergindo a 4%, entre 2024 a 2025, e, depois, a 3,5% ao ano).

Nesse cenário, os gastos com a folha do serviço público cresceriam apenas pela chamada taxa vegetativa, sem novos reajustes salariais. Sairiam de 3,4% do PIB, em 2023, para 3,2% em 2026. Até 2032, estariam abaixo dos 3% do PIB. A correção para o salário mínimo seria pela variação real do PIB de dois anos antes, somada à inflação até 2026. A previdência sairia de 8,1% do PIB, em 2023, para 8,5%, em 2026, e 8,8% em 2032. O abono salarial e o seguro-desemprego sairiam de 0,7% do PIB, em 2023, para 0,6%, em 2026, ficando estáveis até 2032. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) oscilaria entre 0,8% e 0,9% do PIB na década.

Nas despesas discricionárias, vale dizer: a rigidez aumentou. As regras para a correção das despesas com saúde e educação – os chamados mínimos constitucionais – voltarão a seguir a receita corrente líquida e a receita de impostos líquida, respectivamente, em razão dos comandos da Emenda Constitucional n.º 126/2022. Desse modo, é preciso calcular como a parcela discricionária necessária para cumprir esses mínimos constitucionais evoluirá; em seguida, verificar se ela espremerá o restante das discricionárias. Concluímos que o ajuste não limitaria o custeio e o investimento a níveis impeditivos.

Ademais, uma nova rigidez foi introduzida pelo PLP 93, o projeto do novo arcabouço fiscal: os investimentos terão de crescer no mínimo pela inflação.

Dadas todas essas restrições, e sob as premissas enunciadas, o gasto discricionário ficaria em torno de 1,7% do PIB, em 2023, para atingir 1,8% do PIB até 2026 e, então, diminuir a 1,5% até 2032. Esse patamar atende aos requisitos anteriormente dispostos. A regra de gastos proposta no bojo do novo arcabouço fiscal seria observada. Já a meta de resultado primário, descumprida.

Os mecanismos introduzidos no próprio PLP 93 seriam acionados para restringir a evolução da despesa, resultando nas trajetórias aqui expostas para os principais gastos e o primário, com receitas pari passu ao PIB. A dívida/PIB aumentaria dos cerca de 73% do PIB, em 2022, para 82,4% do PIB, em 2026, e 89,9% do PIB, em 2032, no cenário-base, o mais provável. Ainda um patamar alto, mas, para ter claro: sem esse controle de gastos do novo arcabouço, a dívida poderia encerrar 2026 em 87,5% do PIB, avançando até 104,2% do PIB em 2032.

A verdade é que a presença da nova regra de gastos pode evitar cenários bem piores. Por exemplo, se o governo concedesse reajustes reais de 2% ao ano aos servidores, pagasse centenas de bilhões do estoque de precatórios – mas sem resolver o problema em definitivo, como propus no artigo passado – e corrigisse permanentemente o salário mínimo acima da inflação, o espaço fiscal seria diminuto. Premissas importam. Este é o debate.

De todo modo, sem as receitas necessárias para cumprir as metas de primário prometidas (partindo de zero de esforço primário e aumentando em meio ponto do PIB ano a ano), o gatilho redutor do crescimento do limite de despesa deveria ser mais duro. Por que não 20%? Isso melhoraria o primário médio projetado para 2024 a 2032 em R$ 80 bilhões ao ano. Claro que segurar o ímpeto expansionista seria imperativo para o gasto caber na “regra engatilhada”.

Em Crime e Castigo, de Dostoievski, Raskólnikov converge à redenção. O PT, hoje uma pedra no sapato do Ministério da Fazenda do seu próprio governo, precisa inspirar-se nesse mote e começar a ajudar. Não há tempo a perder. Os erros e criatividades contábeis passadas se desmanchariam no ar se retomássemos a rota do crescimento em bases sólidas.

Economista-Chefe e sócio da Warren Rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022)

 

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