O Globo
Oficiais do Exército se comportam como
milicianos, e suas bases mais profundas são estruturas políticas barra-pesada
A ideia inicial era escrever um texto que
falasse da negação da realidade como atitude humana.
Já mencionei aqui um importante artigo de
Freud sobre o tema, e o exemplo que cita. É o do rei que manda decapitar o
mensageiro que trouxe uma carta anunciando que sua cidade seria sitiada por
invasores inimigos. Bolsonaro negou o maior acontecimento da História recente.
A tragédia se abateria sobre o povo, arrastando-o no caminho a ponto de se
tornar um vulgar falsificador de documentos sanitários.
Nem sempre voltar as costas à História significa atropelamento de morte. Em vidas singulares, costuma ser inteligente. Lembro-me do filme de Ettore Scola que no Brasil se chamou “Um dia muito especial”. No dia 6 de maio de 1938, Hitler visitou Mussolini em Roma. Quase todos os romanos foram para as manifestações bater os tambores da guerra que se aproximava. Duas pessoas entram num prédio em busca de um pássaro que fugira. Ela (Sophia Loren), mulher de um fascista que estava nas manifestações; ele (Marcello Mastroianni), um radialista demitido porque era gay. O encontro dos dois, a delicada amizade que surgiu naquela conversa, os enriqueceu para a vida inteira.
Poderia seguir investigando os momentos em
que saltamos do bonde da História. Mas pretendo me fixar na extrema direita,
representada por Bolsonaro, que chegou ao poder por saber usar muito bem os
recursos do mundo digital. É uma direita próxima do crime, em que oficiais do Exército
se comportam como milicianos, e, apesar do discurso moralista, suas bases mais
profundas são estruturas políticas barra-pesada da Baixada Fluminense.
Interessante ver como essa mesma extrema
direita, terraplanista e antivacina, cai literalmente das nuvens. O itinerário
para mim é cristalino: Bolsonaro decreta cem de anos de sigilo sobre sua
carteira de vacinação. Qualquer adversário que lhe sucedesse (ele não pensava
em derrota) desconfiaria de algo tão bizarro. A partir daí, bastaria pesquisar
no sistema do Ministério da Saúde. As provas estavam lá. Surgiu uma entrada de
vacinação falsa em nome dele em São Paulo. Uma tentativa fracassada de
adulterar o sistema em Goiás acabou levando a PF a pesquisar o núcleo de Duque
de Caxias.
Começaram aí a cair das nuvens. As entradas
falsas, dizia o sistema, foram detectadas e, encontradas também todas as
tentativas de apagá-las, foi localizado o computador que acessou as carteiras
de vacinação — enfim, o sistema contava toda a história, da planície ao Palácio
do Planalto. Naturalmente as trocas de mensagem por celular também
facilitariam, mas toda a história é uma trapalhada nas nuvens.
O tenente-coronel Mauro Cid era
ajudante de ordens de Bolsonaro. Para um governo de extrema direita que usou o
mundo digital para chegar ao poder, é, na verdade, um desses atores políticos a
quem chamamos de aloprado. Pensar que ele comandaria um batalhão especial em
Goiânia e que Anderson
Torres era o secretário de Segurança em Brasília é ter quase
certeza de ataques à democracia.
Mesmo diante das vísceras da extrema
direita, há quem ainda a considere uma saída política moderna e defensável. O
episódio, no entanto, embaralha o futuro dessa corrente e de seu líder.
Bolsonaro não tem a dignidade de um herói grego que falhou ao decifrar a
esfinge. Ele pura e simplesmente negou uma realidade gigantesca. Não se pode
trabalhar no caso apenas com o conceito de dificuldade cognitiva. Certamente,
há fatores emocionais que me escapam.
No entanto, na derrota diante da pandemia,
sua capacidade cognitiva foi atingida ao decretar cem anos de sigilo sobre a
própria carteira de vacinação. Daqui a cem anos, ninguém se interessará pela
carteira de vacinação de Bolsonaro. Mas ele certamente será lembrado com a
mesma ênfase com que, depois de séculos, Freud se lembrou do rei que rasgou a
carta e decapitou o mensageiro.
Um bando de aloprados,e do mal.
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