segunda-feira, 8 de maio de 2023

Fernando Gabeira - A extrema direita que cai das nuvens

O Globo

Oficiais do Exército se comportam como milicianos, e suas bases mais profundas são estruturas políticas barra-pesada

A ideia inicial era escrever um texto que falasse da negação da realidade como atitude humana.

Já mencionei aqui um importante artigo de Freud sobre o tema, e o exemplo que cita. É o do rei que manda decapitar o mensageiro que trouxe uma carta anunciando que sua cidade seria sitiada por invasores inimigos. Bolsonaro negou o maior acontecimento da História recente. A tragédia se abateria sobre o povo, arrastando-o no caminho a ponto de se tornar um vulgar falsificador de documentos sanitários.

Nem sempre voltar as costas à História significa atropelamento de morte. Em vidas singulares, costuma ser inteligente. Lembro-me do filme de Ettore Scola que no Brasil se chamou “Um dia muito especial”. No dia 6 de maio de 1938, Hitler visitou Mussolini em Roma. Quase todos os romanos foram para as manifestações bater os tambores da guerra que se aproximava. Duas pessoas entram num prédio em busca de um pássaro que fugira. Ela (Sophia Loren), mulher de um fascista que estava nas manifestações; ele (Marcello Mastroianni), um radialista demitido porque era gay. O encontro dos dois, a delicada amizade que surgiu naquela conversa, os enriqueceu para a vida inteira.

Poderia seguir investigando os momentos em que saltamos do bonde da História. Mas pretendo me fixar na extrema direita, representada por Bolsonaro, que chegou ao poder por saber usar muito bem os recursos do mundo digital. É uma direita próxima do crime, em que oficiais do Exército se comportam como milicianos, e, apesar do discurso moralista, suas bases mais profundas são estruturas políticas barra-pesada da Baixada Fluminense.

Interessante ver como essa mesma extrema direita, terraplanista e antivacina, cai literalmente das nuvens. O itinerário para mim é cristalino: Bolsonaro decreta cem de anos de sigilo sobre sua carteira de vacinação. Qualquer adversário que lhe sucedesse (ele não pensava em derrota) desconfiaria de algo tão bizarro. A partir daí, bastaria pesquisar no sistema do Ministério da Saúde. As provas estavam lá. Surgiu uma entrada de vacinação falsa em nome dele em São Paulo. Uma tentativa fracassada de adulterar o sistema em Goiás acabou levando a PF a pesquisar o núcleo de Duque de Caxias.

Começaram aí a cair das nuvens. As entradas falsas, dizia o sistema, foram detectadas e, encontradas também todas as tentativas de apagá-las, foi localizado o computador que acessou as carteiras de vacinação — enfim, o sistema contava toda a história, da planície ao Palácio do Planalto. Naturalmente as trocas de mensagem por celular também facilitariam, mas toda a história é uma trapalhada nas nuvens.

O tenente-coronel Mauro Cid era ajudante de ordens de Bolsonaro. Para um governo de extrema direita que usou o mundo digital para chegar ao poder, é, na verdade, um desses atores políticos a quem chamamos de aloprado. Pensar que ele comandaria um batalhão especial em Goiânia e que Anderson Torres era o secretário de Segurança em Brasília é ter quase certeza de ataques à democracia.

Mesmo diante das vísceras da extrema direita, há quem ainda a considere uma saída política moderna e defensável. O episódio, no entanto, embaralha o futuro dessa corrente e de seu líder. Bolsonaro não tem a dignidade de um herói grego que falhou ao decifrar a esfinge. Ele pura e simplesmente negou uma realidade gigantesca. Não se pode trabalhar no caso apenas com o conceito de dificuldade cognitiva. Certamente, há fatores emocionais que me escapam.

No entanto, na derrota diante da pandemia, sua capacidade cognitiva foi atingida ao decretar cem anos de sigilo sobre a própria carteira de vacinação. Daqui a cem anos, ninguém se interessará pela carteira de vacinação de Bolsonaro. Mas ele certamente será lembrado com a mesma ênfase com que, depois de séculos, Freud se lembrou do rei que rasgou a carta e decapitou o mensageiro.

 

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