segunda-feira, 15 de maio de 2023

Luiz Claudio Latgé* - Algoritmos, jabuticabas e jabutis

O Globo

A receita para avançar é focar nas questões de consenso, essenciais para uma regulamentação efetiva das redes

O Brasil costuma ter problemas com a lei. Estamos no país onde “vale o que está escrito”, existem “leis para inglês ver” e em que “há leis que colam e leis que não colam”. Portanto, no momento em que o Brasil se prepara para escrever a regulamentação das redes sociais, o Projeto de Lei 2.630, é importante evitar singularidades brasileiras, como jabuticabas e jabutis.

Os recentes ataques a escolas em São Paulo, Santa Catarina e Goiás e a onda de posts disseminando o medo mostraram o tamanho do problema. Governo e mídias se mobilizaram rapidamente para conter as publicações que incitavam a violência, em alinhamento com as melhores práticas internacionais. O Twitter, no entanto, se recusou, num primeiro momento, a adotar o mecanismo de proteção. Alegou que as publicações não feriam “os termos de uso da empresa”, como se o contrato particular pudesse estar acima da legislação existente.

As big techs preferem a autorregulamentação. 

GoogleYouTubeFacebookInstagramTelegramTikTok operam protegidos por algoritmos, não informam quantos usuários têm, quanto faturam e se esquivam de adotar políticas de combate à desinformação. Limitam-se ao cumprimento de ações judiciais. Quando as cumprem. O Telegram já foi tirado do ar recentemente por se recusar a obedecer à Justiça.

A “bancada da desinformação” se mobilizou, fortemente. São parlamentares que usaram estratégias de fake news, como as denúncias de fraudes nas urnas e incitação aos ataques na Praça dos Três Poderes. Inundaram a internet com postagens que alegam que a legislação representa censura e impedirá a prática religiosa. Defenderão a ilegalidade como liberdade de expressão.

Google e Telegram abandonaram a discrição de quem se apresenta como empresa de tecnologia para se valer de seu poder de mídia para atacar a regulamentação. Conseguiram mais alguns processos, multas, mas a votação foi adiada. E corremos o risco de ver o projeto ser desfigurado.

Já há alguns jabutis nas árvores. Como a proposta de que a regulamentação não seja aplicada aos parlamentares. Uma espécie de “excludente de ilicitude”. Desinformação vinda dos políticos não poderia gerar o bloqueio de suas contas na internet.

A receita para avançar neste cenário conflagrado é focar nas questões de consenso, essenciais para uma regulamentação efetiva, para uma lei em que vale o que está escrito. Nesse ponto, trata-se de afirmar a decisão da sociedade de regular essas atividades e a determinação de cobrar seu funcionamento por meio de um organismo fiscalizador.

A União Europeia saiu na frente e apresenta o melhor exemplo de como enfrentar o problema. O Digital Services Act define e regula, enquadra e responsabiliza serviços oferecidos por empresas digitais. Tem a sabedoria de não pretender resolver com uma única votação uma tarefa tão complexa. Prevê ações que serão aplicadas ao longo de toda a década. Na essência, não chega a inventar nada que não exista, mas pode tornar o faroeste do mundo dos algoritmos um território dentro da lei.

*Luiz Claudio Latgé é jornalista

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