quinta-feira, 11 de maio de 2023

Malu Gaspar - Democracia no Brasil ainda corre riscos - com o Supremo, com tudo

O Globo

Está completando sete anos a revelação de um dos diálogos mais famosos da nossa crônica político-criminal. Na gravação feita pelo delator e ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, o então ministro do Planejamento, Romero Jucá, dizia que a elite dirigente do Brasil precisava de um pacto para deter a Lava-Jato.

Segundo ele, era necessário fazer o impeachment de Dilma Rousseff e “botar o Michel (Temer) num grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”. Desde então, porém, muita coisa já aconteceu: depois do próprio impeachment, vieram a Vaza-Jato, a desmoralização da Lava-Jato e, por fim, a ascensão de um presidente da República negacionista, tresloucado e autoritário, que quase acabou com nossa democracia.

A reação da sociedade foi a possível. Como parte do Congresso e a Procuradoria-Geral da República fingiram que não havia nada demais acontecendo, coube ao Supremo tomar decisões que provavelmente não teriam sido aceitas noutros tempos. O inquérito das fake news é um bom exemplo.

Nascido em 2019 com um insanável vício de origem — foi instalado pelo ministro Dias Toffoli com o objetivo genérico de investigar “notícias fraudulentas, ameaças e infrações” contra ele mesmo e seus colegas do STF, além de ter sido entregue a um relator sem sorteio —, o inquérito permanece sigiloso até hoje e nunca foi concluído.

Ainda assim, como serviu para investigar as redes bolsonaristas que disseminavam fake news sobre a Covid-19 e a vacinação e ainda forneceu elementos aos inquéritos sobre os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e o 8 de Janeiro, acabou legitimado (ou engolido) por boa parte da opinião pública. Gilmar Mendes, decano do tribunal, costuma afirmar que, se não fosse o inquérito das fake news, estaríamos hoje sob uma ditadura.

Faz sentido imaginar que, sem a resistência do Supremo, o golpismo de Bolsonaro e figuras como Mauro Cid, Ailton Barros ou Elcio Franco teria avançado de forma irreversível. Daí a dizer que o STF precisava cometer arbitrariedades para combater o arbítrio vai uma longa distância.

Apesar do trauma, o 8 de Janeiro fracassou, e as chances de um novo golpe de Estado hoje são nulas. Mas os supremos juízes continuam a agir como se tivessem poderes extraordinários para praticamente tudo.

Muito dessa onipotência tem sido vitaminado pelo governo Lula, que, sem rumo e sem força diante de um Centrão guloso e de uma extrema direita barulhenta, vem recorrendo ao Supremo para resolver no tapetão as faturas que não consegue liquidar no voto, no Congresso — da Lei das Estatais à privatização da Eletrobras, passando pelo orçamento secreto e, se bobear, até a CPI do golpismo.

Isso tem feito com que os ministros que deveriam zelar pelo cumprimento da Constituição se sintam autorizados a criar suas próprias regras, de acordo com suas supremas conveniências.

Foi assim que Ricardo Lewandowski decidiu, às vésperas da aposentadoria, que a quarentena de 36 meses criada pela Lei das Estatais para políticos com mandato ou dirigentes partidários ocuparem cargos de direção nessas empresas representava uma “restrição de direitos” e, portanto, feria a Constituição.

Veja bem: a lei não impede que políticos recebam dinheiro do fundo eleitoral, sejam eleitos, comandem seus gabinetes ou expressem opiniões, mas evita que ocupem cargos por apadrinhamento político em empresas que administram o patrimônio público.

Mas sabe como é: Lula precisava acomodar seus aliados nessas empresas, e Lewandowski queria agradar ao presidente para ver se conseguia emplacar seu candidato para substituí-lo. Então a lei rapidamente virou inconstitucional.

Do mesmo modo, Edson Fachin entregou a Dias Toffoli, à revelia da presidente e do regimento do STF, uma das ações mais espinhosas — por isso mais valiosas — da Corte. Nesse processo, fundamental para anular as condenações de Lula, Lewandowski concedeu ao petista acesso aos diálogos hackeados da Vaza-Jato e ainda anulou o uso dos programas de registro de propina da Odebrecht como prova.

Há hoje mais de 60 pedidos de políticos pelos mesmos benefícios — todo um Centrão, que vai de Eduardo Cunha a Anthony Garotinho. Fachin, pelo jeito, não estava a fim de julgá-los, mas Toffoli acatou a missão sem reclamar. Mais uma vez, violaram as regras do próprio tribunal.

Ainda assim, ninguém parece se importar. Afinal, por que implicar com uma transgressão à toa, vinda do supremo guardião da democracia? O risco é um dia olharmos para essa quadra da História e percebermos que, de tanto querer defender a democracia, acabamos por ajudar a dilapidá-la mais ainda. Com Supremo, com tudo. Tomara que não seja tarde demais.

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