Valor Econômico
Com derrota no saneamento, governo mostra
que não tem maioria e com petição no STF, que pretende enfrentar o capitalismo
sem risco
O governo não tem maioria no Congresso para
reverter duas reformas, o marco legal do saneamento e a limitação do capital
votante da União na Eletrobras.
Ainda assim, a centrar esforços no arcabouço fiscal, resolveu ir pra cima, com
chances desiguais.
Conselheiros presidenciais chegaram a
argumentar que, por mais fundamentais que fossem, as batalhas da água, esgoto e
luz deveriam ser adiadas para quando o governo ganhasse fôlego parlamentar. O
fiasco no saneamento levou o tema para o Supremo. A contestação ao modelo
societário da Eletrobras foi
direto para a Corte. A primeira é choro de perdedor. A segunda, não. Aos fatos.
Na negociação do saneamento, sob Jair
Bolsonaro, os governadores acamparam no Congresso. Sem fôlego financeiro, de um
lado, e transformadas em cabides de emprego, do outro, as estatais ficaram
longe de universalizar o serviço, mas argumentavam que o capital privado só o
faria porque desobrigado de se valer dos consumidores ricos para subsidiar os
pobres.
Um dos porta-vozes mais ativos das estatais era o então governador da Bahia. Tendo o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia, por testemunha, Rui Costa fechou acordo que preservava o direito de as estatais prorrogarem os contratos vigentes sem licitação desde que se comprometessem a cumprir metas de universalização em curto espaço de tempo.
As concessões, portanto, foram de lado a
lado, mas o PT, apesar do acordo, votou contra. A posição facilitou a vida de
um ex-ministro, hoje senador, que recomendou o veto deste artigo da lei para o
ex-presidente.
Com a eleição do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva, a presença de ex-governadores petistas na Esplanada já
sinalizava que a agenda invadiria a pauta. Não deu outra. A Advocacia-Geral da
União fez ressalvas, mas com a Casa Civil comandada pelo ex-governador
derrotado no saneamento, Lula assinou o decreto que confrontou a lei aprovada.
O texto não apenas regulamentava como
recuperava artigos anteriormente vetados. Não se trata de Lula impondo sua
derrota a Bolsonaro. Os vetos do ex-presidente foram mantidos pelo Congresso. É
o governo bancando uma maioria que deveras tem. E, assim, a rejeição do decreto
pela Câmara na semana passada marcaria a primeira grande derrota parlamentar do
presidente.
Foram tantos os erros que a ação do governo
contaminou a percepção sobre a petição da AGU protocolada esta semana no
Supremo sobre outro tema. Não que faltasse disposição para repeti-los. Lula
reiterou mais de uma vez, depois da posse, sua disposição de reestatizar
a Eletrobras,
mas foi convencido de que lhe faltam agulha e linha. Além do mais, capítulos
polêmicos daquela empreitada, como o jabuti das termelétricas, contaram com o
apoio do PT.
A tese prevalente da ação direta de constitucionalidade,
capitaneada pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, não é pela retomada de
controle. Não advoga nem mesmo que se interrompa a diluição do capital estatal,
hoje de 42% das ações. A petição questiona a afronta aos direitos políticos da
União e requer sua equiparação ao capital investido na empresa. Uma breve
retomada dos fatos se impõe.
A privatização da Eletrobras proibiu
que acionistas tenham capital votante superior a 10%. Em tese, esta cláusula
foi estabelecida para evitar que a concentração acionária resultasse num
controle danoso à prestação de um serviço básico. Na prática, só atingiu um
único acionista, a União, cujos direitos políticos foram minorados em
detrimento de minoritários - sem que tenha sido, sequer, indenizada por isso.
Foi muito diferente do que aconteceu, por exemplo, com a desestatização da
Embraer, que só reduziu os direitos políticos depois da pulverização das ações.
A ideia era concluir a pulverização do
capital com o uso de precatórios. Com as mudanças promovidas sob o patrocínio
do ex-ministro Paulo Guedes, bancos se empanturraram de precatórios para
comprar fatias acionárias da União como a da Eletrobras.
No meio do caminho, porém, mudou o inquilino do Planalto.
Com a jabuticaba aprovada pelo Congresso, a
União não fez um único representante no conselho de uma empresa da qual é maior
acionista. Esteve ausente, por exemplo, da deliberação que aumentou a
remuneração dos atuais administradores e conselheiros para até R$ 12 milhões
anuais.
O mais provável é que o Estado seja
lembrado quando houver prejuízos a serem socializados. Ilação? Basta ver o que
se passa com a Vibra, que resultou da privatização da BR Distribuidora. O
governo tem recebido pressões de bancos para que a Petrobras recompre a empresa
com ações em queda. Não é fantasioso imaginar uma reprise visto que a Eletrobras hoje
é dirigida por administradores que, até recentemente, estavam na Vibra.
O modelo de privatização da Eletrobras foi
votado no período em que mais se afrontou a democracia. E não ficou imune a
isso. Se a Eletrobras,
até a desestatização, foi marcada pela ausência de governança, o capítulo que
veio a seguir em nada a incrementou. A petição do governo já foi acusada de
promover insegurança jurídica. É de se perguntar que segurança o colossal
calote da Americanas produziu para as expectativas dos investidores. A petição
sobre a Eletrobras oferece
ao STF a oportunidade de evitar que práticas semelhantes invadam sua gestão. A
chegada de outro processo, o do saneamento, permite ainda que a Corte
diferencie uma coisa da outra.
Maria Cristina Fernandes sabe tudo.
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