terça-feira, 9 de maio de 2023

Merval Pereira – Incompatibilidades

O Globo

Visões divergentes entre Congresso e governo dificultam entendimento

Lula quer cobrar apoio dos partidos que têm ministérios. A aparente incongruência de ter ministério num governo e não apoiá-lo nas matérias que lhe interessam no Congresso explica-se, no caso brasileiro, pela discrepância entre o que o governo quer e o que os partidos que supostamente o apoiam querem.

O presidencialismo de coalizão em que se baseia a governabilidade desde o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso foi sendo deformado para virar um simulacro de acordo político. A união do PSDB com o então PFL foi um escândalo na época, até porque havia a percepção de que, com o Plano Real, os tucanos não precisavam fazer uma união heterodoxa como essa para vencer a eleição.

Engano, esclareceu adiante o próprio Fernando Henrique. Ele sabia que, para governar, precisava do apoio da centro-direita, unida naquele momento em torno de um PFL fortíssimo no Congresso e nos estados. Não foi à toa que os tucanos ganharam duas vezes seguidas no primeiro turno, feito não alcançado por nenhum outro partido até o momento.

O presidencialismo de coalizão, assim batizado pelo cientista político Sérgio Abranches, seguia então programas de governo e tinha reformas estruturais, como a da Previdência e outras, modernizantes da economia, que necessitavam de apoio do Congresso.

Com a sucessão dos tucanos pelos petistas, esse mecanismo de apoio parlamentar foi se deformando, especialmente porque, como agora, o Congresso eleito em 2002 e o governo Lula não se correspondiam. Tanto que o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, bom entendedor da política, fechou um acordo com o PMDB para dar governabilidade a Lula, mas este recusou prontamente. Não queria acordo com “a direita”.

Só se dobrou à realidade depois de algumas derrotas no Congresso. A saída foi montar o mensalão, que comprou apoio parlamentar em troca de um fisiologismo rasteiro e evoluiu para o petrolão. Nesses 20 anos, porém, o mundo mudou, o país mudou, o Congresso ganhou mais poder, e o esquema de comprar votos já não é tão eficiente. Distribuir ministérios tampouco.

No meio desse percurso, a direita ganhou força, já não sente receio de se posicionar, e a ideologia ganhou destaque no eleitorado de centro-direita, que tinha apenas o PSDB para representá-lo, mesmo assim com muitas ressalvas. Consideravam os tucanos “esquerdistas” e contentavam-se com a oposição ao PT, que cometeu um erro estratégico: jogou o PSDB para a direita, em vez de tratá-lo como aliado de centro-esquerda.

O presidencialismo de coalizão passou a ser “de cooptação” e só ganhou sentido unívoco no governo Temer, quando governo e maioria do Congresso tinham a mesma tendência. O resultado foram reformas aprovadas, como a trabalhista, a do ensino médio, a fiscal, que criou o teto de gastos, e outras bem encaminhadas, como a previdenciária, aprovada no governo Bolsonaro.

Além do parlamentarismo branco, que deu ao Congresso o poder que jamais tivera, ampliado no governo Bolsonaro, que abdicou do controle do Orçamento em favor de Congresso. Hoje, o desentendimento entre Congresso e governo Lula baseia-se justamente nessa falta de acordo sobre uma visão esquerdista do governo e a tendência conservadora majoritária do Congresso, que se recusa a recuar de decisões já tomadas, como o Marco do Saneamento Básico, a privatização da Eletrobras, a reforma do ensino médio.

Guia

Recentemente, quando concedia uma entrevista à GloboNews, Celso Amorim, assessor especial de Lula, tentou desqualificar o jornalista Guga Chacra, que perguntara por que não aproveitara a ida a Moscou para visitar Kiev também.

— Você conhece bem a região, acha que é fácil assim? — ironizou Amorim.

Ao que Guga respondeu prontamente:

— Conheço sim. Basta fazer o que todas as autoridades fazem.

Ou seja, viajar de Paris para a fronteira da Polônia com a Ucrânia e de lá ir de trem por 700 quilômetros até Kiev. É o roteiro que Celso Amorim fará, já feito pelos presidentes dos Estados Unidos, Joe Biden, e da França, Emmanuel Macron.

Um comentário: