terça-feira, 9 de maio de 2023

Carlos Andreazza - Base parlamentar episódica

O Globo

O Parlamento não opera como em 2003 — e o governo tem dificuldade em encontrar o passo para uma relação que mudou. O Congresso ora se move sob outra gramática, derivada de administrar superfície relevante do Orçamento. A marcha foi alterada. O ritmo nunca mais será aquele de quando Lula presidiu o país pela primeira vez. Tampouco poderá ser — assim deseja o governo — o do período de Bolsonaro.

Os termos do impasse estão evidentes; o modo como se concertou por manter o orçamento secreto nos autorizando a projetar que eventual acordo passe pela camuflagem dos vícios.

Não se admite, no governo, que o trânsito entre Planalto e Parlamento seja como nos últimos quatro anos. Reage-se, no Congresso, para informar que não será como há duas décadas. O Parlamento se tornou uma cooperativa gestora de fundos orçamentários. O governo quer ter maior poder sobre a destinação dos fundos.

Eis o nó.

Um choque entre dois passados: o distante, saudoso para o governo, que não existe mais; e o recente, ainda com restos a pagar, por cuja permanência o Congresso peleja.

Não havendo mais lideranças partidárias capazes de mobilizar os seus, como um pacote, por agenda de governo, não haverá mais previsibilidade nem mensalão. Base parlamentar doravante episódica. Construída votação por votação, corpo a corpo. O orçamento secreto acabou formalmente, mas continua. É, aliás, a linguagem de negociação corrente.

O parlamentar sabe que o dinheiro lhe pertence; que foi apenas deslocado de rubrica, da maldita emenda do relator (RP9) para o balaio RP2. Sabe que o Planalto topou, pela PEC da Transição, compor o puxadinho que driblou o STF e reservou a grana sob a fachada dos ministérios. Pague-se. O governo segura.

O Congresso que depende menos do Executivo forjou espécie muito particular de independência; independência que o Planalto tenta contingenciar. Explica Marcos Pereira, presidente do Republicanos, em entrevista ao GLOBO:

— O Republicanos é independente e será até o fim do mandato do Lula. Isto significa negociar pauta a pauta.

Negociar pauta a pauta significa que o governo, pela aprovação de um projeto, terá de tratar com cada deputado o tempo e o volume de liberação de emendas de que os parlamentares são senhores. Esta é a valsa. E o Planalto a aceitou; agora resistindo para impor alguma gestão sobre as distribuições.

De novo Pereira, também vice-presidente da Câmara:

— Ouço reclamações no plenário sobre a demora dos recursos das emendas, de colegas que têm ministérios dizendo que não podem indicar cargos de segundo e terceiro escalões, que têm dificuldades em nomeações.

Está armada a sinuca. Os “recursos das emendas” são dos parlamentares. Terão de ser liberados, num arranjo que o governo chancelou antes mesmo de iniciar. Mas o Planalto breca o relógio das distribuições porque não quer reproduzir o esquema de ministérios como meros carimbadores.

Pereira, ouvindo de terceiros, e Elmar Nascimento, direto, têm pressa. Há que “descentralizar” — conforme o glossário de Arthur Lira. Descentralizar, entretanto, não garantirá aprovar qualquer matéria. A independência orçamentária do Congresso banca a altivez por rejeitar decretos invasivos como aqueles com que o governo pretendeu dilapidar a Lei do Saneamento.

Também merece nota a observação de Pereira sobre os colegas que “têm” ministérios e não os levariam com a porteira fechada. O Planalto sempre em busca de maior controle. Não será fácil. Nem necessariamente melhor para a República. Está aí, repito, a forma disfarçada do orçamento secreto a mostrar um tipo de solução pela governabilidade. Outras acomodações tendem a vir. A turma no Congresso se acostumou aos modos fluidos de quando Ciro Nogueira articulava; e o governo precisa tocar sua pauta no Parlamento.

Será tudo mui escorregadio. O Republicanos, sem vender terrenos no céu, exercita o modelo “União Brasil light”:

— Não teremos cargos no primeiro ou no segundo escalão do governo federal. O que não quer dizer que deputados não possam indicar em seus estados.

O partido não terá cargos, mas seus integrantes podem ter. Não serão cadeiras do partido. Ainda que ocupadas por seus membros. Isso é independência. Manja? Fica mais claro quando posto o caso de Daniela do Waguinho, ministra do Turismo, que tenta migrar para o Republicanos:

— Se conseguir vir antes [da janela de 2026], ela não será uma ministra da cota do Republicanos, assim como não é, atualmente, do União Brasil. Seguiremos independentes com ou sem ela.

A ministra seria do partido; mas o ministério, não. Assim funciona no União. Experimente-se, porém, tirar-lhe a cadeira. Se deu, pegará mal tomar. Né? Pode atrapalhar a relação.

Diria o cínico: o que pode atrapalhar a relação também poderá abrir janela de oportunidades. E seja o que Deus quiser, diria o crente — nada a ver com a propriedade do Republicanos.

 

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