terça-feira, 23 de maio de 2023

Merval Pereira - A praga do racismo

O Globo

Reação de Vinicius Jr. pode ajudar a conter o racismo

Vini Jr. transformou-se num símbolo internacional na luta contra o racismo não por ser ativista, mas simplesmente por não admitir ser ofendido pela cor de sua pele ou ser cerceado nas comemorações depois dos gols, fazendo dancinhas que não visam a diminuir os adversários, simplesmente são reflexos de sua alegria e de sua cultura.

Sua resiliência, com o brilho de seu futebol, está provocando mudanças na estrutura de um esporte que é o mais visto no mundo, talvez o mais lucrativo. Uma indústria de bilhões de dólares que perde muito com a imagem manchada pelo racismo.

Enquanto o presidente da Liga Espanhola, Javier Tebas, tenta transformar Vini Jr. em culpado e minimiza os ataques racistas, tanto por ser de extrema direita quanto pelo receio de perder dinheiro, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, teve uma atitude firme e digna: apoiou o jogador ofendido e disse que a partida deveria ter sido encerrada, proposta que está se alastrando entre os jogadores nos times espanhóis.

O racismo sempre esteve presente nos estádios de futebol em vários países, inclusive no Brasil. A seleção brasileira em 1958 só escalou negros a partir do terceiro jogo. Eram grandes jogadores: Pelé aos 17 anos, Garrincha e Djalma Santos. Poucos jogadores, porém, reagiam às ofensas.

Pelé passou grande parte da vida negando que tivesse sofrido racismo e, mesmo em 2014, quando admitiu, criticou o goleiro Aranha, que se revoltara com os xingamentos:

— Ele se precipitou. Se fosse parar o jogo a cada xingamento de “macaco” ou “crioulo”, tinha que ter parado todos os jogos de que participei.

Há relatos de um comentário de Didi quando era treinador no Peru. Teria dito “quando eu era preto” significando “quando eu era pobre”. Ronaldo Fenômeno, que ontem se posicionou a favor de Vini Jr. e contra o racismo, demorou a se entender negro. Em 2005, jogava no Real Madrid e fez o seguinte comentário sobre a discriminação racial nos estádios de futebol:

— Acho que todos os negros sofrem [com o racismo]. Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância — declarou na época.

O que parece ter virado a chave na cabeça de Ronaldo foi seu pai ter sido vítima de racismo no condomínio onde morava, na Barra da Tijuca. Moradores preferiam usar o elevador de serviço a tê-lo como companheiro no social. “Seu Nélio”, como é conhecido, fez uma palestra sobre racismo na escola das netas, o que deixou Ronaldo “cheio de orgulho”.

O governo brasileiro agiu corretamente ao assumir o protesto contra o racismo a um brasileiro. Tirando a proposta extravagante do ministro da Justiça, Flávio Dino, de transformar os ataques ao jogador em crimes extraterritoriais, o que permitiria processar um espanhol racista, as ações do governo foram corretas, por meio dos canais competentes. O Itamaraty protestou formalmente, vários ministros entraram em contato com seus pares na Espanha para exigir ação governamental saneadora, o próprio presidente Lula se manifestou, assim como o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez.

O futebol é um elemento político importante nas relações internacionais, aspecto do soft power das nações que têm nesse esporte a projeção de sua sociedade, mestiça, habilidosa, criativa, musical, como o Brasil. Destacadamente, o Brasil sai na frente e já usou o futebol para ajudar na ação das Forças Armadas nas ações de paz no Haiti, quando a seleção brasileira substituiu a guerra civil pela alegria da festa, com Ronaldo Fenômeno à frente.

Ou quando a presença de Pelé com o Santos conseguiu suspender outra guerra civil na Nigéria. Ser marcada como uma liga racista — como Vini Jr., o Real Madrid, o técnico Ancelotti frisaram em suas manifestações de protesto — não é bom financeiramente para La Liga, cujos patrocinadores estão sendo pressionados, nem politicamente para a Espanha. Talvez, graças à reação de Vini Jr., a praga do racismo seja contida.

 

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