sexta-feira, 19 de maio de 2023

Naercio Menezes Filho* - Tecnologia, trabalho e Bolsa Família

Valor Econômico

Não haverá solução no futuro a não ser transferir renda para um número cada vez maior de pessoas

A desigualdade de renda entre os brasileiros caiu em 2022 para o nível mais baixo da última década, segundo dados divulgados recentemente pelo IBGE. Esta queda ocorreu tanto devido à recuperação do mercado de trabalho para os trabalhadores menos qualificados no período pós-pandemia, como pelo aumento das transferências de renda do programa Auxílio Brasil, na tentativa de Bolsonaro de ganhar a eleição presidencial. Mas a desigualdade por aqui permanece entre as mais elevadas do mundo.

Muitos analistas destacaram que esta queda da desigualdade foi bem-vinda, mas esperam que as futuras quedas dependam mais do trabalho do que de transferências, pois não haveria como aumentar ainda mais os gastos com o Bolsa Família. Outros analistas aventaram a possibilidade de que a queda na oferta de trabalho que ocorreu no final de 2022 teria sido causada por esse aumento das transferências, pois os beneficiários prefeririam receber as transferências do que procurar um trabalho formal. Quão realistas são estas preocupações?

Para analisar estas questões, precisamos entender as transformações que ocorreram no mercado de trabalho brasileiro nas últimas décadas. Dados do IBGE mostram que tem havido uma redução contínua do emprego em ocupações que realizam tarefas rotineiras na economia brasileira, tanto as cognitivas, que envolvem cálculos simples, controle de estoque e de qualidade e protocolo, como as rotineiras manuais, como a operação de máquinas, transporte e montagem. Além disto, ocupações manuais, como faxina, limpeza, conserto e reforma também perderam espaço. Essas tarefas, que em 2012 ocupavam 64% da mão de obra, agora ocupam 60%.

Evidências de vários países mostram que estas tarefas agora estão sendo realizadas por máquinas. Um estudo recente, por exemplo, mostrou que houve queda dos salários, aumento do desemprego e da desigualdade nas regiões do Brasil, México e Argentina em que mais robôs foram introduzidos nas empresas1. Assim, tarefas que antes eram desempenhadas por trabalhadores, agora estão sendo realizadas por máquinas, como os call-centers, que empregavam milhares de trabalhadores no Nordeste, e os caixas de supermercados, que estão sendo substituídos aos poucos pelo auto-atendimento. O mesmo está ocorrendo, de forma bem mais acelerada, nos EUA.

Isto pode explicar a redução da oferta de trabalho que tem ocorrido ao longo do tempo entre os trabalhadores com escolaridade mais baixa no Brasil. A taxa de participação entre os que não completaram o ensino médio, por exemplo, declinou de 52% para 46% entre 2012 e 2022, em linha com a queda das ocupações rotineiras e manuais. Estes empregos foram substituídos por robôs e não voltam mais. Assim, muitos trabalhadores que desempenhavam estas tarefas desistiram de procurar emprego, o que explica a queda na participação.

Esta queda ocorreu principalmente entre os jovens, que passaram a estudar mais, em busca de habilidades para terem uma ocupação que não seja substituível por robôs no futuro. As ocupações que mais aumentaram sua participação no mercado de trabalho brasileiro nos últimos anos são as não-rotineiras analíticas e interativas, que envolvem pesquisa, ensino, planejamento, diagnóstico, negociação e coordenação, por exemplo.

O avanço acelerado da inteligência artificial, como o Chat-GPT, poderá acelerar o ritmo de desaparecimento de empregos. Se isto ocorrer, será necessário expandir os programas de transferências de renda para que as pessoas não passem fome. Não haverá como reduzir a desigualdade através da geração de empregos, como defendem os analistas, simplesmente porque não haverá geração de empregos para humanos com baixa qualificação.

O novo livro de Daron Acemoglu, o economista mais produtivo do mundo, e Simon Johnson (“Power and Progress”) discute exatamente estas questões. Os autores argumentam que o tipo de inovação que é gerada nas empresas de tecnologia determina se o crescimento futuro será includente ou excludente. Atualmente, grande parte das inovações são direcionadas para a automação de tarefas que antes eram exercidas por humanos, de forma que os ganhos ficam concentrados nas elites. Segundo os autores, a sociedade precisa regular as empresas de tecnologia que dominam o setor para exigir que o progresso tecnológico seja útil para nós, humanos, gerando mais informação e criando novas tarefas, e não nos substituindo.

Do ponto de vista do trabalhador, será necessário formar pessoas que tenham mais habilidades analíticas e interativas, que possam usar as informações que estão sendo geradas pelas novas tecnologia para empreender e criar. Mas como iremos formar pessoas com estas habilidades se as crianças brasileiras mal sabem ler e escrever corretamente?

Os resultados de uma pesquisa internacional lançada esta semana, que avaliou a capacidade de leitura de crianças de 10 anos de idade em vários países (PIRLS), mostrou que o nível de leitura dos alunos brasileiros está entre os mais baixos dos 42 países analisados. Vale notar que o ciclo inicial do ensino é o único que tinha mostrado crescimento de aprendizado nas avaliações nacionais nos últimos trinta anos. Desesperador.

Em suma, como o Brasil está adotando tecnologias geradas nos países avançados que substituem humanos nas tarefas rotineiras e manuais e como as nossas crianças não estão conseguindo ler e escrever aos 10 anos de idade, não haverá solução no futuro a não ser transferir renda para um número cada vez maior de pessoas. E não é que as pessoas não queiram trabalhar, é que suas habilidades não serão mais necessárias no mercado de trabalho. Cada vez mais pessoas irão viver de renda no Brasil.

“The impact of robots in Latin America: Evidence from local labor markets”, por Brambilla, Cesar, Falcone e Gasparini.

*Naercio Menezes Filho, professor Titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e Diretor do CPAPI

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