O Estado de S. Paulo
Nos dias de hoje, deixamos, enquanto sociedade, de renunciar ao estado de guerra. Queremos a justiça pelas próprias mãos
Na obra Leviatã, de 1651, Thomas Hobbes
estabelece uma forte relação entre a origem do Estado e a aspiração pela paz.
No pacto social configurador do poder estatal, os indivíduos entregam sua
liberdade irrestrita em troca da segurança proporcionada pelo Estado. Na visão
de Hobbes, o poder soberano é essencial para a sociedade sair do estado de
guerra permanente, que inviabiliza o desenvolvimento coletivo e a própria
conservação pessoal.
A perspectiva proposta por Hobbes tem plena
atualidade. São muitas as críticas contemporâneas ao poder público: sua
disfuncionalidade, seus gastos, seus privilégios, sua falta de
representatividade, sua reprodução de desigualdades. Ao contrário do que às
vezes se pensa, Hobbes não atenua a responsabilidade do Estado. Para ele, a
legitimidade do soberano depende, em boa medida, de sua capacidade de prover
segurança aos cidadãos. Se a população não tiver uma percepção de segurança,
certamente o poder público irá sofrer forte contestação.
Mais do que uma questão teórica e distante – reflexões de um filósofo nascido em fins do século 16 –, a relação entre Estado e paz continua sendo hoje fundamental para o exercício do poder. Se o governante não entrega paz – se ele não é percebido como alguém que contribuiu efetivamente para a segurança da população –, muito dificilmente será reconduzido ao poder.
Em janeiro deste ano, circulou a notícia de
que Jair Bolsonaro atribuía sua derrota nas eleições ao episódio em que Carla
Zambelli perseguiu, com arma em punho, uma pessoa em São Paulo. Ainda que a
hipótese seja plausível, não se pode afirmar, com segurança, uma relação de
causalidade suficiente entre os dois eventos. Mais seguro é estabelecer uma
relação de conformidade entre a ação de Carla Zambelli naquela tarde de sábado
e as declarações e atos de Jair Bolsonaro em seus quatro anos de Palácio do
Planalto. Por isso, culpar a deputada pela derrota no segundo turno é não
apenas responsabilizar-se a si mesmo pela não reeleição, como admitir que sua
política de armar a população reduziu a sensação de segurança e representou, em
último termo, o descumprimento de seu mais primário dever enquanto governante.
A análise de Hobbes sobre o Estado aporta
luzes também sobre a responsabilidade dos cidadãos na construção da paz. Para o
filósofo inglês, na base do pacto social que dá origem ao Estado encontramse
leis gerais estabelecidas pela razão. As duas primeiras regras referem-se,
respectivamente, ao dever de trabalhar pela paz e à necessidade de que todos
renunciemos ao estado de guerra.
Pode-se discutir sobre as possíveis causas
e circunstâncias do fenômeno, mas me parece evidente que, nos dias de hoje,
deixamos, enquanto sociedade, de renunciar ao estado de guerra. Queremos a
justiça pelas próprias mãos. Queremos o linchamento. Não queremos esperar os
critérios da lei e os tempos do Judiciário. Queremos o justiçamento imediato.
Não queremos a sobrevivência do lado contrário. Queremos que ele perca a paz, a
honra, a liberdade, o emprego, o futuro. Queremos que as instituições de Estado
apliquem nossos critérios pessoais de justiça (que presunçosamente qualificamos
de imparciais e objetivos) para perseguir nossos inimigos.
Antigamente, fazer esse justiçamento com as
próprias mãos envolvia riscos significativos. Era uma atividade perigosa. As
redes sociais inverteram, no entanto, a equação, proporcionando um ambiente
seguro para a vingança, a humilhação, o escárnio, a guerra. É um cenário de
irresponsabilidade festiva. Se alguém ousa expor a incorreção de seus posts
lacradores, basta acusá-lo de intolerante e ignorante, incapaz de entender a
piada.
O pacto social foi abandonado. Exige-se
segurança do Estado, mas não se aceita renunciar ao estado de guerra. Como
expôs Hobbes, o problema é que, quando todos querem fazer justiça com seus
próprios métodos – quando não se aceita a vigência de limites sobre a própria
conduta –, não há paz possível.
A ideia hobbesiana de contrato social pode
ser aplicada não apenas a uma longínqua origem do Estado, mas a todos os atos
do poder público. Em cada novo marco jurídico, em cada decisão judicial, em
cada ato do Executivo, renova-se essa dinâmica de troca entre poder estatal e
sociedade civil. Não à toa, os que não querem renunciar ao estado de guerra,
seja qual for sua bandeira ideológica, opõemse radicalmente a toda e qualquer
renovação desse pacto, rejeitando a reconfiguração das responsabilidades. Não
se aceita negociação, não se admite ser voto vencido; por exemplo, na aprovação
do Código Florestal, na tramitação de um novo marco jurídico para as redes
sociais ou numa decisão do Supremo Tribunal Federal da qual se discorda.
Exemplo especialmente preocupante é a crescente resistência à própria
Constituição de 1988.
Não é preciso concordar com o pessimismo de
Hobbes para reconhecer a validade do seu alerta. Sem lei, com cada um exercendo
sua liberdade de forma irrestrita e irresponsável, não se chega à realização
pessoal ou coletiva, mas à guerra civil.
*Advogado
Um grande pensador.
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