Folha de S. Paulo
Por que Deltan perdeu ganhando e este
escriba ganhou perdendo. Coisas da vida
Deltan
Dallagnol perdeu o mandato, mas não o rebolado do baixo jacobinismo
reaça, indo até o chão do messianismo barato. O TSE cassou por
unanimidade o registro de sua candidatura, e ele anunciou uma nova cruzada
contra os três Poderes. Se termina de novo em depredação, não sei. Acho que os
"tiozão" vão preferir encher o tanque com combustível mais barato...
Convocou um levante contra os tribunais, evidenciando não ter a menor esperança
de que a decisão vá ser revertida. Comparou-se a José, o filho de Jacó; a
Daniel, o da cova dos leões, e
a Jesus, o nazareno. Mas sem exageros: no papel de mártir, dispensa os
rigores da prisão, a fuça das feras ou o sofrimento da cruz. Na fronteira do
ridículo, esse rapaz nunca hesitou em dar o passo seguinte.
Antes que volte a seu discurso doidivanas da quarta (17), é preciso corrigir uma inverdade que se espalhou na imprensa. O relator do caso, Benedito Gonçalves, não fez uma "interpretação extensiva" do conceito de Processo Administrativo Disciplinar (PAD). Advogados tarimbados e alguns com tarja de "juristas" incorreram no que, em certos casos, é erro decorrente de opinião que precede a leitura do voto e, em outros, má-fé. "Então você não admite opinião divergente?" É certo que sim. Desde que se divirja do que está escrito, não de uma inferência sem amparo no texto.
No seu destampatório de profeta da reação,
o próprio cassado, notório oportunista desde os tempos em que contava com
dezenas de porta-vozes nas redações (ainda os tem), ecoou a mentira sobre a
suposta releitura do conceito de PAD. Gonçalves se ocupou explicitamente do
assunto, respondendo, inclusive, à tese da defesa. Obrigo-me a reproduzir
trecho do voto: "O que se discute, no presente julgamento, é a prática de
um ato —pedido voluntário de exoneração— anterior à própria instauração dos
processos administrativos e que teve como propósito frustrar, em manifesto
abuso de direito, a incidência do regime de inelegibilidades. Em outras
palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o
recorrido [Deltan], a possibilidade ou não de se conferir interpretação
ampliativa ao termo ‘processo administrativo disciplinar’. O que aqui se tem é
uma conduta anterior e contrária ao direito para evitar a instauração desses
processos, ou seja, fraude à lei."
Como evidenciei ainda na madrugada de
quinta em artigo no UOL, depois de ler as 37 páginas, os pilares
do voto vencedor estão no Código Civil, artigos 166-VI — "É nulo o negócio
jurídico quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa" — e 187:
"Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes". E os precedentes estão devidamente
citados, do STF e
do próprio TSE. Leiam o voto. E vocês ganham ainda como brinde uma bela citação
de Pontes de Miranda, um clássico da área: "Fraude à lei consiste,
portanto, em ser aplicada outra regra jurídica e deixar de ser aplicada a regra
jurídica fraudada. Aquela não incidiu porque incidiu esta; a fraude à lei põe
diante do juiz o suporte fáctico, de modo tal que pode o juiz errar. A fraude à
lei é infração da lei, confiando o infrator em que o juiz erre."
A "fraude à lei", no caso, se
traduz em "fraude à investigação". Os juízes são livres para se
deixar ou não enredar pelo fraudador. Os sete do TSE —três deles indicados
por Jair
Bolsonaro, note-se— resistiram. Deltan, no entanto, atribuiu a
responsabilidade por sua cassação ao governo e a Lula. Ali estava o
ex-procurador fanaticamente antipetista, que fez da Lava
Jato uma plataforma de assalto ao poder. Ele prosperou, e o país
afundou. Não por acaso, estava cercado na quarta por negacionistas da vacina e
por golpistas. Eis o José, o Daniel e o Cristo depois de um banho de impostura
da extrema-direita.
PS: Sempre fui contra a Lei da Ficha Limpa,
mas ela existe. Eu a considero inconstitucional. Deltan é seu entusiasta. Nesse
debate, fiquei do lado que foi derrotado. Dura lex sed lex. Cassado, ele perdeu
ganhando. Dado que apoio a cassação, embora crítico da lei, ganhei perdendo.
Lendo e tentando aprender.
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