O Globo
O brasileiro foi descobrindo, com
sofrimento e decepção, que esse passado de costumes ia sendo construído graças
às narrações do presente
De vez em quando, a gente tem que deixar de
lado certos conceitos consagrados e assumir o risco de buscar no desconhecido o
que está na hora de encarar. O mundo do conhecimento, hoje dominado pelo
digital e pela inteligência Artificial, filhos da Internet que já tem 50 anos
de controle de nossas mentes, está sendo abalado por novas formas de pensar o
mundo, novas ideias para entendermos melhor o que fazemos aqui. E sobretudo
para onde vamos ou queremos ir.
Toda civilização conhecida, quer esteja decifrada ou não, possui valores mais ou menos organizados que nos ajudam a estabelecer critérios e limites para saber o que elas são ou foram. Não importa se já não são práticas sociais vigentes, se já não exista uma população que as represente com significância no mundo real. O que importa é que elas existam ou que tenham existido de modo concreto, deixando seus herdeiros de hoje a praticar, mesmo que não tenham consciência disso, o que foram suas práticas.
Stefan Zweig era um pensador europeu que,
em 1941, escreveu um livro sobre o Brasil, em que dizia que o brasileiro era um
homem sem futuro. A cultura do brasileiro era esquálida, ele nunca teve poesia
a que se referisse em tempo muito anterior ao que vivia, um passado
pré-histórico como o dos povos da Europa. Os brasileiros não tinham uma
tradição literária ou uma religião primitiva, “não há lendas populares
conservadas ao longo dos séculos”. Em suma, o Brasil era um país do futuro
porque não tinha um passado!
Mas, aos poucos, esse passado foi se
esclarecendo graças à invenção do que se sucedia naquele presente inútil.
O brasileiro foi descobrindo, com
sofrimento e decepção, que esse passado de costumes ia sendo construído graças
às narrações do presente. E essas narrações eram do presente porque não
podíamos viver sem elas. Elas eram também o nosso futuro.
Isso tudo se misturava em ideias de gente
como Gilberto Freyre, Paulo Prado, Sergio Buarque de Holanda, Oswald de
Andrade, Darcy Ribeiro, etc, essa gente que por hábito passou a escrever,
ninguém sabe direito se inventando um país por cima de ilusões e histórias ou
se organizando o país desorganizado, a nação que eles sonhavam tanto poder ter.
Quem sabe, apenas para poder escrever sobre ela, criar seus costumes como
crianças que inventam seus brinquedos.
Agora lí um desses criadores que me encheu
de prazer como todos os outros que citei e que poderia ainda citar mais. Como o
antropólogo Manuel Diégues Júnior, que se dedicou a Alagoas, sua terra natal,
onde difundiu a obra de Gilberto Freyre, o mestre a quem tanto ensinou, como em
“O bangüê nas Alagoas”, em que conta como era a vida social, econômica e
cultural nos tempos do engenho.
Mas o que acabo de ler é o assombroso
relato de “O tupinambá que virou planeta”, de Rafael Pinotti. Ubiratã é um
indígena de origem tupinambá que se obriga a uma caminhada em direção do Oeste
do continente americano, em busca do sol. No caminho, ele se casa com Moema,
indígena como ele, cruza com os franceses na luta pela conquista da Baía de
Guanabara e vive emocionante ocupação do território Inca no Peru. No rumo de
Ubiratã, o autor nos conta histórias como a do casal de meninos que vivia em
ilhas, uma em frente à outra.
O périplo de Ubiratã vai terminar na
Terceira Parte do livro, quando ele se torna seu título, num belo e misterioso
conjunto de situações que somam sua origem indígena com seu fim ligado ao
progresso e à visão científica da astronomia a seu alcance.
Vou voltar, aqui mesmo, ao livro, seu autor
e seu personagem. Talvez possamos entender então o que dizia Gilberto Freyre,
no prefácio de “O bangüê nas Alagoas”: “É um sistema de que ninguém consegue
separar a formação brasileira”.
Muito bem.
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