Carta Capital
As rebeliões dos despossuídos são raros
espasmos contra a baderna eterna dos dominantes
Acompanho com intensa curiosidade e muito
interesse as preparações da CPI do MST. Ainda na
semana passada, ouvi uma entrevista do presidente da Comissão, Coronel Zucco.
Também segui as manifestações do relator, deputado Ricardo Salles, a Excelência
que se especializou em instigar a passagem de boiadas. Na segunda-feira 29, na
primeira agenda externa da CPI, os deputados cumpriram diligências na zona
rural do Pontal do Paranapanema, no extremo oeste do estado de São Paulo.
A propósito de diligências, ocorreu-me
relembrar a sucessão dos recentes casos
de escravidão em áreas rurais de vários estados de Pindorama. O
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou 918 trabalhadores em condições
semelhantes à de escravidão entre janeiro e 20 de março de 2023, alta de 124%
em relação ao volume dos primeiros três meses de 2022.
Ao ler as declarações dos responsáveis por esses empreendimentos escravagistas, fui abalroado por uma desagradável sensação: os senhores escravocratas não tinham clareza a respeito de suas ações. Na verdade, as praticavam com a naturalidade que confirma a permanência do espírito escravagista nas camadas proprietárias da sociedade brasileira.
Não hesitei em recuperar o que havia
escrito há tempos a respeito do menosprezo dedicado aos não proprietários pelos
senhores da propriedade. Não se trata de repetir, mas, sim, de reafirmar.
O Brasil passou de uma sociedade colonial
escravista para uma economia mercantil escravista, evoluindo depois para uma
sociedade urbano-industrial, sem ter conseguido promover a democratização da
propriedade. Não falo apenas da propriedade agrária, mas da propriedade em
geral.
Jean-Jacques Rousseau, no Discurso sobre as
Origens da Desigualdade, compreendeu que a propriedade privada era também uma
forma de tornar alguns homens mais iguais que os outros. Muitos anos mais
tarde, o sociólogo americano Barrington Moore escreveu um livro muito
importante – evocativo da obra de Rousseau – As Origens Sociais da Ditadura e
da Democracia. Moore mostra como as formas de propriedade agrária e sua
evolução afetam as possibilidades de surgimento de sociedades mais inclinadas à
democracia e ao autoritarismo.
A colonização da Nova Inglaterra foi
realizada por puritanos, pequenos proprietários que fugiam dos conflitos
religiosos e sociais na Europa. Essa gente está na origem do sonho americano da
democracia dos pequenos proprietários. Em 1862, o governo dos Estados Unidos
editou o Homestead Act, com o propósito de regular a expansão da fronteira,
impedindo a expansão da grande propriedade do Sul. Não vamos alimentar ilusões:
isto custou a expropriação dos índios de forma violenta, a especulação dos
donos de ferrovias com as terras. Mas a presença do Estado vendendo lotes a
1,25 dólar o acre garantiu a reprodução da propriedade familiar, assegurando
assim as bases que sustentavam a sua democracia e a defesa dos direitos
individuais.
No Brasil, a posse da terra esteve fundada
originariamente no privilégio concedido pela Metrópole e depois numa Lei de
Terras que estimulava a posse pela violência, a pretexto de criar um mercado livre.
De maneira geral, a grande propriedade no Brasil hoje é fruto da ocupação
violenta, da grilagem, da obtenção ilegal de titularidade. Tudo isso com a
conivência e até o estímulo dos senhores que se ocupavam e ainda se ocupam da
direção do Estado.
Mas não é só isso. O restrito acesso à
propriedade e os métodos normalmente adotados para se chegar a ela tornam
escassos (em relação à população) os novos proprietários. Uma vez investidos
dessa condição, passam a defensores obstinados da exclusão dos demais, preferencialmente
mediante o uso da violência legal exercida pelo Estado.
De tempos em tempos, a sociedade sofre os
efeitos dessa esdrúxula tentativa de combinar formas arcaicas de propriedade,
capitalismo e democracia. Os sem-terra, os sem-teto, os sem-renda e os
sem-direitos resolvem se manifestar. Logo ressurgem os protestos oficiais e
oficiosos, estes com a oratória dos sabujos, contra as rebeliões espasmódicas
dos despossuídos, meros soluços de protesto contra a baderna secularmente
promovida pelos dominantes.
*Economista e professor
Falou e disse!
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