O Globo
Nos EUA, os eleitores são soberanos; no
Brasil, soberanos são os juízes
Denunciado pela retenção ilegal de
documentos sigilosos, Donald Trump pode
ser condenado à prisão. Mesmo nessa hipótese, não perderá o direito de
concorrer à Presidência. Jair
Bolsonaro, que enfrenta julgamento no TSE sob
acusações de ataques ao sistema eleitoral e às instituições democráticas,
poderá se tornar inelegível, mas não corre risco de prisão. Nos Estados Unidos,
os eleitores são soberanos; no Brasil, soberanos são os juízes.
Um século atrás, em 1920, o líder
socialista americano Eugene Debs, condenado por crime de sedição, concorreu à
Presidência enquanto servia sentença numa penitenciária de Atlanta e recebeu
914 mil votos (3,4% do total). Os Estados Unidos separam os domínios da Justiça
e da política: o primeiro compete aos tribunais; o segundo, aos eleitores.
Nada, nem mesmo a cadeia, anula os direitos políticos, que emanam da cidadania.
No Brasil, cidadania é coisa secundária, incerta, precária. Daí que um tribunal especial, o TSE, tem a prerrogativa de decidir quem pode e quem não pode se candidatar a cargos eletivos. No fundo, os juízes operam com o poder de cassar a soberania popular. Os eleitores perdem o direito de votar nos candidatos de sua preferência. A tutela judicial dos eleitores ocorre sistematicamente nas disputas para cargos parlamentares. Desde 2018, transformou-se em fator decisivo nas eleições presidenciais.
Quem ocupará o Planalto? Perguntem, antes,
aos Grandes Eleitores (os juízes), que dirão em quem os pequenos eleitores (o
povo) podem votar. Bolsonaro chegou à Presidência numa eleição marcada pelo
veto judicial à participação de Lula. Depois, como os juízes mudaram de ideia,
Lula retornou ao Planalto. Tudo indica que, em 2026, disputará a reeleição em
pleito sem a presença de Bolsonaro, graças à decisão soberana dos juízes.
O socialista Debs foi punido por conclamar
à resistência contra o alistamento militar. Seus eleitores, porém, não foram
punidos. Puderam exercer plenamente o direito de voto. No Brasil, entretanto,
prefere-se punir os eleitores — os de Lula, antes, e os de Bolsonaro, agora. Ao
vetar candidaturas, sob o pretexto de punir indivíduos, os juízes cancelam
direitos de vastas parcelas da sociedade. No fundo, é a democracia que vai para
a cadeia.
A Lei Complementar nº 64, de 1990, elencou
uma série de situações de inelegibilidade. Duas décadas depois, a Lei
Complementar nº 135 (Lei da Ficha Limpa) adicionou dez outras situações capazes
de barrar a candidatura de indivíduos condenados por um tribunal colegiado,
mesmo em processos que admitem recurso. Voluntariamente, os políticos
concederam aos juízes a tutela sobre os eleitores.
A prerrogativa judicial de configurar as
disputas eleitorais, eliminando de antemão certos candidatos, conduz à
politização do sistema de Justiça. Magistrados, em todas as instâncias, sabem
que são Grandes Eleitores. Suas preferências partidárias ou ideológicas tendem
a contaminar suas decisões em processos cujos réus são políticos. Na ponta
oposta, cria-se mais um forte incentivo para que os políticos articulem a
indicação de amigos leais a vagas nos tribunais superiores.
Atrás da legislação sobre inelegibilidade
esconde-se um intercâmbio tácito. Eis a barganha: em troca da concessão aos
juízes do poder de tutela sobre os eleitores, os políticos esperam ser poupados
de punições criminais. As acusações contra Bolsonaro envolvem crimes
gravíssimos, puníveis com a prisão. Contudo parecem escassas as possibilidades
de que o ex-presidente conclua sua carreira política na cela de uma
penitenciária. No fim, ao que tudo indica, apenas seus eleitores serão
sentenciados.
Num país viciado no jogo da polarização,
princípios políticos perderam valor. A saga de Lula, impedido arbitrariamente
de concorrer ao Planalto, nada ensinou ao Brasil — nem mesmo ao PT. Se, anos
atrás, a direita bolsonarista celebrou a inelegibilidade de Lula, hoje a
esquerda lulista prepara-se para celebrar a inelegibilidade de Bolsonaro. Nos
dois lados, o que se comemora, de fato, é a cassação da soberania popular.
Nada a ver o caso de Lula com o de Bolsonaro.
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