domingo, 25 de junho de 2023

Dorrit Harazim - As fronteiras que o Brasil precisa conquistar para formar uma sociedade

O Globo

Animalização e desumanização da pele negra — disso o país entende. Aqui o espetáculo é diário, mal chama a atenção

Mais uma semana de emoções compartilhadas. Desta vez, beirando as fronteiras da razão e da inovação. Mundo afora, quem desconhecia a diferença entre submarino e submersível, explosão e implosão, turismo extremo e risco calculado aprendeu o essencial com o sumiço da cápsula Titan nas profundezas do Atlântico. Nada a acrescentar aqui. Imaginar a agonia dos cinco tripulantes encapsulados até a morte é o bastante.

Foi na busca de obras de referência on-line sobre turismo extremo que acabei pousando, sem querer, em tema completamente alheio a arrojos marítimos. Coisas da internet — você nunca sabe onde vai parar. Valeu a pena — a Exposição Mundial sediada pela Bélgica quase 130 anos atrás tem mais a ver com o Brasil de hoje do que a malfadada expedição da empresa OceanGate. (Exceção feita à agência do ex-ministro bolsonarista de Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, atual senador pelo PL, que anunciava pacotes aos destroços do Titanic até ocorrer a tragédia desta semana.)

Bruxelas, a capital belga, se engalanara para receber os 27 países participantes da Feira Internacional de 1897. O anfitrião à época, rei Leopoldo II, tinha um propósito específico ao hospedar o evento: atrair investidores e convencer a população belga da importância de manter a imensidão e a riqueza do Congo sob seus domínios. Para isso, um antigo pavilhão art nouveau do príncipe de Orange situado em Tervuren, a 10 km da capital, foi transformado em Palácio Colonial e abrigou artefatos geológicos, animais da fauna africana, produtos e o objetos trazidos do Congo. Modernidades não faltaram, inclusive um monotrilho capaz de atingir 150 km de velocidade!

Nada, porém, arrebatava tanto os visitantes quanto as três “aldeias nativas” montadas em Tervuren. Dentro desses espaços cercados, de terra batida e choupanas típicas das etnias bangala e mayombe, 267 homens, mulheres e crianças trazidos à força do Congo tinham por tarefa reproduzir seus hábitos e costumes perante uma plateia que chegou a 40 mil curiosos por dia. Numa quarta “aldeia”— esta não cercada —, um abade de Flandres demonstrava como “educar” e “civilizar” jovens africanos.

A feira permaneceu aberta por seis meses, o que incluiu o início do inverno europeu. Dos seis congoleses que morreram em Tervuren como atração turística, nem se sabem os nomes completos. Tampouco puderam ser retornados às raízes — acabaram enterrados naquela terra estrangeira em local reservado a adúlteras e suicidas. Foi somente em meados do século passado que tiveram direito a lápides.

A Bélgica, como se sabe, não foi exceção entre os países europeus da época a cultuar o “exótico”, o “outro”. Da França à Suíça, da Espanha à Alemanha, Reino Unido, Holanda ou Itália, zoológicos humanos foram atrações consagradas desde o início do século XIX. Mas poucos países colonialistas mantiveram a prática por tanto tempo quanto a Bélgica. Ainda em 1958, com as guerras de independência na África já assoprando seu cangote, o então rei Balduíno também inaugurou uma “aldeia congolesa”, com mais de 600 “nativos” trazidos d’além-mar. À noite eram transferidos para um centro de acolhimento. A bebê de 8 meses que morrera de causa desconhecida durante a feira desta vez teve direito a enterro no cemitério de Tervuren, com nome completo e uma placa de mármore: “Juste Bonaventure Langa, Exposition Universelle 1958/Congo pense à toi”.

De lá para cá, o Congo da bebê Juste se esfacelou várias vezes, o Palácio Colonial do inglório Leopoldo II virou museu permanente do Congo e hoje está rebatizado de AfricaMuseum. Ali se encontra a narrativa detalhada desse passado. Passado? Em evento organizado em 2002 na comuna francófona de Yvoir, um grupo de pigmeus de Camarões foi convidado a se apresentar na Praça da Floresta, onde animais costumam ser expostos e examinados pelos moradores da região.

Animalização e desumanização da pele negra — disso o Brasil entende. Aqui o espetáculo é diário, mal chama a atenção. Vez por outra sai dos trilhos, como na oferta de um Simulador da Escravidão até recentemente disponível na PlayStore, do Google. Ou na cena que expôs o “homem amarrado” pelos pés e pelas mãos, apesar de já algemado pela PM de São Paulo. A imagem evocava um animal para abate. Mesmo assim, a juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli não viu “elementos que permitam concluir ter havido tortura ou maus-tratos, ou ainda descumprimento dos direitos constitucionais assegurados ao preso”.

Ou ainda na exposição do deputado negro Renato Freitas (PT-PR), escolhido a dedo — “de forma aleatória”, segundo a Polícia Federal — para ser escoltado perante os demais passageiros de um voo Foz do Iguaçu-Londrina. A revista a que foi submetido nada encontrou. Ou ainda na horrenda constatação de uma mãe, militante negra: sua menina de 5 anos ganhara uma banana de um coleguinha pré-escolar. Ou ainda....

Essas, sim, são fronteiras de animalização e desumanização que o Brasil precisa conquistar para formar uma sociedade. Deixemos as profundezas do mar aos aventureiros individuais.

 

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