O Estado de S. Paulo
A nova traquitana da Apple nos chega com a promessa de mil prazeres, mas como um cinto de castidade: quem aceitar usá-lo não verá mais nada além dele
Quem acompanha as páginas da imprensa já viu que há um sururu festivo em torno do lançamento do novo par de óculos fabricado pela Apple. Estamos às voltas com um incontido frisson, como se dizia nos tempos pré-internet – ou um siricutico assanhado, em tupi-guarani arcaico. Artigos e reportagens propagam uma excitação estridente com o tal objeto, que, sejamos francos, tem o aspecto de uma máscara de mergulho reluzente, mas opaca.
Segundo relatos da crônica tecnófila, a
traquitana custará a cifra de US$ 3.499. Dizem que é um truque de marketing.
Com o preço lá em cima, a empresa pretende atrair na largada os fregueses muito
ricos. Estes, então, com sua proverbial sanha ostentatória, vão se encarregar
de fazer propaganda do produto, atiçando nos mais pobres a cobiça irrequieta. O
fetiche do Vision Pro – esse é o nome comercial da coisa – atingirá os
píncaros. Logo aparecerão na TV os jogadores de futebol descendo do ônibus, à
porta dos estádios, com o negócio pregado na cara, como já fazem com bonés e
fones de ouvido. Atrizes de novela. Milionários em excursão pelo Vaticano.
Celebridades no restaurante.
Em seguida, o preço cairá e as multidões
conquistarão o direito de olhar o que o gadget tem por dentro. Experts adiantam
que imagens de uma definição assombrosa se acendem e, a poucos centímetros das
pupilas do consumidor, revelam maravilhas jamais vistas ao lado das paisagens
que já conhecemos. Chamam a isso de “realidade aumentada”, “realidade mista”,
“realidade virtual”. Realidade-mais-que-real.
O tapa-olho duplo oferece funcionalidades
sortidas. Quais serão? A correção imediata do astigmatismo do freguês? A visão
noturna? Um zoom poderoso, capaz de dar close nas crateras da lua cheia? Haverá
talvez um microscópio embarcado, para flagrar bactérias que flutuam no ar?
Certamente, virá com um dispositivo que, em dois piscares de olhos, abre o seu
extrato bancário. Mais ainda, cenas lisérgicas, alucinatórias, poderão conviver
com uma objetividade criteriosa e exata. Vai ser possível contemplar de
pertinho o que é uma viagem de LSD sem tomar LSD. Talvez um aplicativo de
reconhecimento facial com legenda estará integrado para nos ajudar a lembrar na
hora o nome da pessoa que vem nos cumprimentar toda sorridente.
Se a nova mercadoria der certo,
mergulharemos em mais uma transformação radical da cultura: cada terráqueo se
converterá num ciborgue ótico. É fácil de imaginar o nosso dentista portando um
desses para cavoucar os nossos molares. O cirurgião também terá suas retinas
turbinadas, com jeitão de piloto de caça. Logo mais, o motorista de Uber vai
trafegar igualmente mascarado. O guarda de trânsito aplicará multas sem tantas
falhas. A professora. A classe inteira. As massas em passeata. O casal de
amantes, à noite, no quarto escuro.
Mais um tempo e os olhos dos seres humanos
estarão a maior parte do tempo recobertos, escondidos. Falar com alguém, assim,
olho no olho será um hábito anacrônico. Sair por aí de íris à mostra será
considerado um ato de obscenidade. Mostrar os cílios em público será falta de
compostura.
(A partir daqui, esta prosa vai entre
parênteses. Talvez o improvável leitor nunca tenha ouvido falar dos ludistas.
Eram trabalhadores ingleses que, no início da Revolução Industrial, quebravam
as máquinas para protestar contra a automação e garantir seus velhos empregos.
Isso nos primórdios do século 19. Entraram para a História como militantes do
ridículo. Hoje, quando criticamos as investidas impetuosas da tecnologia
digital, somos um pouco ludistas. Ridículos. Mobilizamos vocabulários do
passado próximo – como fez este artigo aqui, antes dos parênteses – para
denunciar a técnica prepotente, que joga para o acostamento atributos humanos
de que nos orgulhamos. O ludismo é inevitável.
De outra parte, a rendição solícita aos
ditames da técnica, que não pensa nem se compadece, é uma indignidade da razão.
Sejamos ludistas, nem que seja para não ser indignos. O que nos importa hoje
não é quebrar as máquinas, mas quebrar a lógica que as ordena – e, se possível,
quebrar os monopólios globais dos seus imperadores. Uma gota de humanismo,
ainda que tardia.
No documentário brasileiro Janela da Alma
(2001), dirigido por João Jardim e Walter Carvalho, um belo filme, o escritor
português José Saramago diz que a humanidade precisou de 2.500 anos para
entrar, toda ela, dentro da caverna de Platão. Com sua metáfora luminosa, mas
não luminescente, Saramago critica a civilização que acredita mais em imagens
eletrônicas do que nas palavras e no pensamento. Não poderia estar mais certo.
Vinte anos depois do notável Janela da
Alma, o Vision Pro vem nos oferecer a caverna portátil. Suprassumo do
individualismo de massa. Com seu jeitão de uma venda sólida que encaixota os
olhos, com seu ar de mordaça escópica, ele nos chega como um cinto de
castidade: quem aceitar usá-lo não verá mais nada além dele. Mas ele chega com
a promessa de mil prazeres, como se fosse um massageador íntimo, posto que o
olhar é uma zona erógena. Zona, agora, cativa.)
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Desconhecia o assunto.
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