quinta-feira, 22 de junho de 2023

Felipe Salto* - Reforma tributária: ao inferno à procura de luz

O Estado de S. Paulo

O Conselho Federativo para cuidar do novo tributo subnacional e o FDR tornaram-se aberrações da proposta em discussão no Congresso

O Conselho Federativo para cuidar do novo tributo subnacional e o Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR) tornaram-se aberrações da proposta de reforma tributária em discussão no Congresso. Na sua forma atual, essas ideias maculam profundamente a iniciativa. Tratarei dos outros problemas nas próximas colunas.

Comecemos pela questão do tal conselho. Há três etapas no processo tributário: 1) a previsão constitucional para instituir um tributo (imposto, taxa ou contribuição) pela União, Estado ou município; 2) sua instituição propriamente dita, por meio de lei; e 3) sua regulamentação pelo respectivo Poder Executivo. A saber, o regulamento contém as regras necessárias para operacionalizar a arrecadação, atividade típica dos governos.

O Conselho Federativo não cabe nessa lógica. De acordo com a PEC n.º 45, na versão com IVA dual, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) seria instituído como um tributo conjunto dos Estados e municípios. Em seguida, o Conselho Federativo regulamentaria e cuidaria de arrecadar e partilhar o IBS entre os governos subnacionais.

Para ter claro: esse órgão central seria o responsável pela arrecadação e por sua distribuição entre Estados, municípios e contribuintes (no caso dos créditos apurados devidos). O IBS, um imposto subnacional sobre o valor adicionado, substituiria o ISS (municipal) e o ICMS (estadual). Assim, algum mecanismo de split payment ou de divisão do bolo – tão simples quanto isso – seria de fato necessário. A tributação passaria integralmente ao Estado de destino das transações, requerendo meios para enviar cada fatia da receita do imposto a quem de direito. O Estado e o município não comandariam o processo, mas, sim, um órgão representativo.

Por exemplo, quando uma empresa de um município exportasse uma mercadoria a um contribuinte de outro município, por hipótese, localizado num segundo Estado, o imposto seria sempre recolhido no destino (e não preponderantemente na origem, como atualmente). Além disso, o que é comum, a cadeia de produção poderia estar espalhada por diversas localidades. Ao ser consumido o bem final, a arrecadação seria distribuída na devida proporção para Estados e municípios de destino, observada também a parcela da cota-parte do antigo ICMS. Os contribuintes que tivessem direito a créditos gerados ao longo da cadeia de produção os receberiam por meio de uma mesma conta central. O conselho chefiaria tudo isso. A imagem da “mesada”, usada pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado, foi oportuna nesse aspecto. Difícil de imaginar quem aceite um arranjo assim.

Quem deve comandar sua própria arrecadação é o Estado, o município ou a União. Aliás, o que diria a União se alguém lhe impusesse um conselho para gerenciar seus tributos? E a cereja do bolo indigesto: a governança da poderosa instância pretendida seria definida em lei complementar. Um salto no escuro já; os “meros detalhes” depois.

Cabe, ainda, perguntar sobre a dinâmica da fiscalização e da arrecadação. Um exemplo: e se houver créditos derivados de notas fraudadas e o contribuinte for inadvertidamente pago pela conta central? Como se daria essa fiscalização? Seria também o Conselho Federativo o responsável? Difícil de imaginar os Estados confortáveis. Já se sabe que ao menos 12 deles seriam contrários a esse modelo de gestão.

É irrazoável entregar a um órgão de representação 100% das receitas do próprio tributo. O ICMS e o ISS correspondem a algo como 9% do PIB, mais de 1/4 da carga tributária do País. A propósito, o paralelo com o Comitê Gestor do Simples Nacional é inútil. Lançaram mão dessa comparação para reiterar a ideia-força de uma gestão central. Balela. A parcela de ICMS e ISS (do Simples) representa 3% da arrecadação desses dois impostos.

Uma saída seria instituir contas individualizadas. Outra seria o Estado exportador responsabilizar-se pela distribuição da receita, sujeito a punições severas para o caso de desrespeito à regra. Agora, um passo atrás: por que jogar fora o ISS e o ICMS ao invés de melhorá-los por meio de legislação infraconstitucional? Se a guerra fiscal é um dos problemas – e é –, que se preveja sanção! O princípio do destino poderia concretizar-se por resolução do Senado, como defendo desde que fui secretário da Fazenda em São Paulo, em 2022.

As resistências dos Estados à reforma têm sido respondidas, em parte, com o FDR. Ele deve ficar blindado das regras fiscais e já se cogita colocar R$ 100 bilhões, do bolso da União, para bancar os malogrados incentivos do ICMS (e não para promover o desenvolvimento econômico integrado da Nação). Fala-se em manter esses benefícios até 2032, verdadeira usina de ineficiência econômica, que passaria a alimentar-se da União, com o FDR. Os riscos são: perenizar os incentivos, neutralizando os ganhos alocativos da migração da tributação para o destino da operação; e assumir um custo fiscal impeditivo, com aumento da complexidade no lugar da simplificação apregoada.

Não me ocorre nada mais apropriado do que recorrer a Lupicínio Rodrigues: “Se eles julgam que há um lindo futuro (...), saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz”.

*ECONOMISTA-CHEFE DA WARREN RENA, FOI SECRETÁRIO DA FAZENDA E PLANEJAMENTO DO ESTADO DE SÃO PAULO E O PRIMEIRO DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI

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