segunda-feira, 5 de junho de 2023

Fernando Gabeira - Os maduros erros do governo

O Globo

O elogio a Maduro é só a superfície. No fundo, a esquerda volta as costas a quem a apoiou, enquanto os conservadores se agrupam com eficácia

No final do século passado, cobri o êxodo dos refugiados do comunismo albanês nos portos da Itália. Em seguida, viajei pelos países bálticos que acabavam de se liberar. Virou o século, e viajei algumas vezes para Pacaraima, onde entrevistei centenas de refugiados da ditadura venezuelana.

A compreensão da violência desses regimes é parte de minha experiência pessoal, para além da teoria e dos livros. Não é minha tarefa argumentar com quem ainda tem uma visão romântica do comunismo. Muito menos convencer políticos e diplomatas experientes que envelheceram com suas convicções ideológicas inabaláveis.

Ao receber Maduro com pompa e afirmar que as acusações contra a Venezuela são apenas narrativas, Lula sabia das consequências. Como dizemos na economia, a repercussão negativa já estava precificada. Uma das vertentes da discussão é precisamente discutir esse preço, abstendo-se de repisar os argumentos que nos distanciam.

É uma ilusão imaginar que a defesa do regime chavista afasta apenas o centro e a direita. O presidente do Chile, Gabriel Boric, não concorda com ele, e é preciso muito malabarismo para excluí-lo do campo da esquerda.

A objeção mais comum à fala de Lula é a dissolução da ideia de frente democrática nesse tópico da política externa. Isto é um velho problema da esquerda: a suposição de que um programa partidário possa substituir uma síntese das aspirações nacionais em nossa projeção no exterior.

Ao escolher a exaltação de Maduro, como se tudo dependesse de narrativas, e não de fatos, aliás uma tese da extrema direita, o governo Lula paga um preço. E, no meu entender, está aí o erro de cálculo.

É possível argumentar que política externa não mobiliza o povo. No entanto, quando se trata de defesa da democracia, o tema transcende a política externa e nos joga no coração da luta nacional. Indiferente à real correlação de forças, o governo, nesse particular, marcha para o abismo, cavando o fortalecimento da extrema direita.

Na verdade, muitos votaram contra Bolsonaro para preservar a democracia. Se a alternativa vitoriosa revela com tanta contundência que não dá a mínima para a democracia, isso significa uma grande solidão. Não tem sentido, para o grande contingente de democratas de verdade, apenas reclamar da sorte, mas sim compreender a necessidade de encontrar um caminho.

Não há saídas fáceis. Sem uma frente democrática na atual conjuntura, aumentam muito as chances da extrema direita. É impossível abrir mão da força da esquerda, independentemente do estágio de seu desenvolvimento. A oscilação entre correntes políticas que não valorizam a democracia parece ser o destino do Brasil, principalmente porque nas eleições conta muito o carisma do candidato.

O expoente da extrema direita está para ser afastado das eleições. Vai ajudar. Mas há o avanço conservador na Câmara, esvaziando a estrutura ambiental do governo, impondo o marco temporal na demarcação das terras indígenas, autorizando a devastação da Mata Atlântica — isso mostra não apenas derrotas do governo, mas de todos os setores que o apoiaram nas eleições.

Se ignoramos as possibilidades de ampliar a base democrática, estaremos sempre caminhando para trás. Lula sugeriu ter compreendido isso na campanha. Uma vez eleito, parece mais interessado em ajustar contas com seus impulsos ideológicos, defendendo a ditadura venezuelana, ou em suas pretensões pessoais, indicando o próprio advogado para o STF.

Arrisco dizer que a recepção e o elogio a Maduro são apenas a superfície. No fundo, parece que a esquerda no poder não consegue analisar o momento com precisão, voltando as costas a democratas que a apoiaram, enquanto as forças conservadoras se agrupam com grande eficácia no Congresso. Tempos difíceis nos esperam.

 

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