segunda-feira, 5 de junho de 2023

Miguel de Almeida - Lanterna dos afogados

O Globo

Meu bom amigo José Aníbal, ex-senador paulista, telefona e me pergunta:

— Dez anos depois de 2013, como ficou o país? Melhor?

Eu estava na balsa de Ilhabela-São Sebastião, final de tarde. Diante de meus olhos, a exuberância da Mata Atlântica e a repentina lembrança de que os agrotrogloditas da Câmara abriram espaço para sua destruição.

— Olha, Zeaníbal, a luta contra a ditadura dos milicos foi mais fácil. Agora parece que todos querem destruir a minguada civilização brasileira.

Pensava nos votos dos petistas para desmontar os ministérios de Marina Silva e Sonia Guajajara. E no imenso terno usado por Nicolás Maduro ao ser recebido por Lula da Silva. A quantidade de pano ali soou opressiva.

— Não precisa responder de imediato — ele me disse.

Os 20 minutos de duração da travessia do canal sempre sugerem uma espécie de cápsula do tempo, com a realidade suspensa, distante da algaravia mundana. É um instante — a mim bastante comum — quando se encontra o Brasil de Tom Jobim e Noel Rosa, jamais o compadrio de Arthur Lira. Ou o anacronismo de Gleisi Hoffmann.

— Não preciso pensar muito, Zeaníbal. Basta pensar no tio da Damares.

Em 2013, sob o governo Dilma Rousseff, turbas jamais vistas saíram às ruas em protesto contra o estado geral das coisas. Protestavam pela péssima qualidade dos serviços públicos, pelo aumento das tarifas dos transportes e pela má aplicação dos recursos do contribuinte. Foi um esgar contra tudo, quando se pensou que o brasileiro enfim passara a brigar para ser cidadão, deixara o papel de massa de manobra.

Até que a receita azedou. Em meio às reivindicações, justas a maioria delas, sentia-se o cheiro dos meliantes de sempre; escondidos em trajes de Rambo, tão exóticos quanto os eleitores de Daniel Silveira, pediam intervenção militar. Eram poucos, já enrolados em bandeiras do Brasil, porém se destacavam pela desfaçatez em querer novamente a ditadura. Com uma camada de verniz, não tão néscios portanto, havia ainda a pretensa nova direita do MBL; reacionária no discurso em embalagem de “mauricinhos” voluntariosos — logo transformados em porta-estandartes de Bolsonaro. Como surgiram também os black blocs, espécie de lupenzinato periférico em máscaras pretas. Exalavam já o ódio que mais tarde marcaria os posts dos pastores bolsonaristas.

A vitória a fórceps de Dilma Rousseff em 2014 se daria com a amplificação do dístico de Lula da Silva: “nós” contra “eles”. Você não pode esquecer esse mantra para compreender o Brasil desde então: nós e eles. A clivagem fora inaugurada. No caso, com o massacre de Marina Silva embrulhado em fake news e aleivosias típicas do vindouro bolsonarismo. Como se demonstrou, seria mais fácil bater o playboy Aécio Neves. Um segundo turno entre Dilma e Marina colocaria em xeque o discurso retrógrado e mal acentuado da petista. Basta lembrar que a Gleisi já estava no pedaço. E Guido Mantega (!) vendia terreno na Lua.

As passeatas de 2013 e o impeachment de Dilma, em 2016, embalado por uma crise econômica impulsionada pela gestão petista da economia, não apenas chamuscaram a esquerda (o “nós” de Lula), como recolocaram em jogo a direita que ousa dizer seu nome (o “eles”, até então sujeito oculto da frase). Com Bolsonaro, o Brasil reviveu a extrema direita do primeiro governo Vargas e de Emílio Médici e Ernesto Geisel no período militar, sempre lembrados pelo desaparecimento físico de seus opositores políticos.

Quis o destino forjar uma frente ampla, com Lula e Alckmin na cabeça de chapa, para derrotar o capitão. Os eleitores foram obrigados a esquecer que o “eles” da frase ocorreu por causa do “nós”, mas a briga por salvar a civilização impunha um sacrifício menor. A chapa juntou um tipo de esquerda e outro de centro-direita, abrigado num partido ora socialista (parece, e é uma salada à Didi e Mussum). Em cinco meses de governo, esquecendo que Dilma e Bolsonaro foram ao espaço por causa da economia, o que temos?

1. Um presidente viajante matraqueando as calúnias diplomáticas assopradas por Celso Amorim. Eu ouvi: Lula disse que seu assessor andou pela Venezuela e garantiu que tudo anda limpeza lá. Como esteve com Putin e de lá trouxe boas recordações;

2. Um “nós” que diz querer dinheiro de países para proteger a Amazônia e, noutra mão, não protesta contra a ideia de exploração de petróleo numa área riquíssima em recifes e corais. A típica modernidade petista;

3. Um vice-presidente e ministro que quer dar subsídio para as multinacionais venderem mais barato seus automóveis. É o deserto de ideias também na centro-direita;

4. Eu lembro: Alckmin já falou e ameaçou proibir o celular pré-pago para baixar a criminalidade;

5. Não ria; 2013 não é uma foto na parede.

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