O Globo
Partidos e parlamentares vão precisar
aprender que política se faz com diálogo, negociação e até barganha, nunca com
ameaça, emparedamento e golpismo
Teve de um tudo na série de episódios que,
pela segunda vez em um semestre, ameaçaram o funcionamento do governo eleito
para livrar a democracia da extrema direita golpista. Articulação política
capenga, coalizão inconsistente, Legislativo guloso, oposição articulada foram
os ingredientes que, cozidos em fogo amigo, deram numa quarta-feira, 31 de
maio, quase tão dramática quanto o domingo 8 de janeiro, de preocupante
memória.
Não é exclusivo do Brasil o ambiente político polarizado, movido a solavancos. Mundo afora, candidatos ao Executivo vitoriosos nas urnas esbarram em parlamentares e opositores empenhados em impor à governabilidade testes de estresse permanentes. Aconteceu no Chile do presidente Gabriel Boric, na França de Emmanuel Macron, na Espanha de Pedro Sánchez. Nos Estados Unidos de Joe Biden, só anteontem presidente e Congresso fecharam o acordo para aumentar a dívida e livrar o setor público da paralisação por falta de recursos. Na Colômbia, Gustavo Petro despachou o gabinete construído em aliança e recompôs seu ministério com aliados de esquerda, em resposta à resistência de partidos da base a reformas propostas pelo Executivo.
Sobram exemplos de eleitos pela agenda de
defesa da democracia que adentram palácios, mas patinam no Legislativo. A composição
do Congresso Nacional, saído do primeiro turno das eleições 2022 mais
conservador do que nunca, prenunciava o relacionamento pouco amistoso com Lula no
terceiro mandato. A articulação que permitiu a aprovação da PEC da Transição —
ainda no governo de Jair Bolsonaro e após o Supremo Tribunal Federal declarar a
inconstitucionalidade das emendas de relator — alimentou a ilusão de uma
convivência republicana. O ministério inchado e multipartidário, somado ao
alinhamento dos Poderes após os ataques ao STF, ao Congresso e ao Planalto na
primeira semana do novo governo, consolidaram a convicção.
Lula negligenciou a política interna ao,
acertadamente, privilegiar as viagens ao exterior em sinal de reaproximação do
Brasil da comunidade internacional, na esteira do enfrentamento à emergência
climática. Os encarregados da articulação política estiveram sob pesadas
críticas quando a agenda parlamentar começou a se intensificar. Fernando
Haddad, que assumiu a negociação com o Congresso do regime fiscal que
substituirá o teto de gastos, chegou a dizer em entrevista à CBN que “nunca um
ministro da Fazenda recebeu tantos políticos”.
O governo errou um bocado e jogou contra o
próprio patrimônio ao admitir o esvaziamento dos ministérios do Meio Ambiente e
dos Povos Indígenas. Marina Silva e Sonia
Guajajara, titulares das pastas, são vitrines do compromisso de
campanha de Lula de conter o desmatamento da Amazônia e impedir o genocídio dos
indígenas. O fogo amigo moveu o tratoraço da lavoura arcaica em aliança com a
indústria fóssil, interessada na exploração de óleo na foz do Amazonas, litoral
do Amapá.
A esse caldo se juntaram bancadas
interessadas em liberação de emendas e cargos e um presidente da Câmara obcecado
em não perder poder. Arthur Lira foi
derrotado nas urnas quando Bolsonaro não se reelegeu. Perdeu novamente quando o
Supremo pôs fim às RP9s, que fizeram dele o responsável por parcela expressiva
do Orçamento. Enxergou nova derrota quando o presidente Rodrigo Pacheco,
pandemia sob controle, restabeleceu o rito original de apreciação das medidas
provisórias. Em vez da tramitação inicial unicamente pela Câmara, as comissões
mistas, com entradas alternadas com Senado.
Por causa da queda de braço entre as duas
Casas, praticamente não houve votação de MPs de fevereiro a maio. Alguns textos
foram abandonados para expirar, outros transformados em projetos de lei. Um
punhado, caso da MP 1.154 de reorganização do governo, dependia da apreciação
convencional. Assim, tanto a inépcia da articulação política quanto o apetite
de Lira empurraram o governo para a quarta-feira interminável, que poderia ter
chegado ao fim com o redesenho forçado do ministério à semelhança de Bolsonaro.
A MP foi aprovada, bem como o Projeto de
Lei do Marco Temporal, que ameaça direito constitucional dos povos indígenas, e
a legislação que mina a proteção à Mata Atlântica. Lula terá de vetar este,
frear aquele, cobrar compromisso das legendas aliadas e, sobretudo, reparar o
massacre imposto às pastas das ministras Marina e Sonia. Um caminho é ir ao STF
para devolver ao MMA a Agência Nacional de Águas. Há feridas a curar e um país
necessitado de boas e modernas políticas públicas.
Partidos e parlamentares, em particular o presidente da Câmara, precisarão aprender que política se faz com diálogo, negociação e até barganha, nunca com ameaça, emparedamento e golpismo. Quem não tem nada a perder tem menos ainda a entregar.
Falou e disse!
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