quinta-feira, 1 de junho de 2023

Kenneth Rogoff* - Fiasco do limite da dívida não acabou

Valor Econômico

O debate nunca foi sobre a dívida; é sobre poder

O acordo provisório que acabou de ser fechado para aumentar o teto da dívida dos Estados Unidos não fará o problema desaparecer. Os impasses partidários sobre o limite da dívida federal tornaram-se uma característica previsível da vida política americana. E embora alguns culpem uma regra mal idealizada, esse argumento não vai ao cerne da questão.

A verdadeira fonte do problema é que os políticos, hoje, têm pouca motivação para se comprometer. Num contexto de distritos eleitorais manipulados e redes sociais e meios de comunicação tradicionais divididos ideologicamente (amplificados por bots, algoritmos e incentivos econômicos), a instabilidade só piorará num futuro previsível. Isso pode significar paralisações mais frequentes no governo ou mais restrições à independência do banco central. Com o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, muito interessado em regressar à Casa Branca após as eleições de 2024, quem sabe o que mais virá por aí.

A ideia de democratas e republicanos de que a dívida é sempre gratuita, desde que utilizada de forma ‘correta’ é de uma ingenuidade estonteante. Taxas de juros reais prospectivas são hoje muito mais altas que durante os anos de pandemia

A ideia de que atingir o limite de endividamento forçará os EUA ao incumprimento imediato do pagamento das suas obrigações é um boato. O governo arrecada dinheiro mais do que suficiente dos impostos para pagar os juros da dívida e o limite de endividamento não cria obstáculos para o refinanciamento da dívida consolidada que vai vencendo.

É claro que o governo estaria impedido de gastar acima de suas receitas, porque não haveria forma de fazê-lo sem emitir novas dívidas. Sendo assim, o Tesouro seria empurrado para escolhas difíceis. Como ninguém quer tocar na Segurança Social ou no Medicare, seria necessário adiar ou reduzir os pagamentos noutros pontos, possivelmente conduzindo a uma paralisação parcial do governo (o que não seria a primeira vez).

Nada forçaria o Tesouro dos EUA a deixar de honrar a dívida do país e a lançar o sistema financeiro global no caos. Isso só poderia acontecer se o impasse durasse demasiado tempo (meses?) e isso fizesse com que as pressões políticas simplesmente explodissem.

É o que normalmente acontece em mercados emergentes endividados, onde o incumprimento total costuma acontecer muito antes de a capacidade de pagamento ser realmente a restrição. Ao contrário dos mercados emergentes, é claro, onde as dívidas são muitas vezes denominadas em moeda estrangeira e a capacidade do Estado de tributar é estritamente limitada, os EUA podem emitir mais dívidas por um toque de magia, embora gastar muito e muito depressa possa alimentar a inflação.

Algumas das ideias que foram propagandeadas para contornar o limite de endividamento são tentativas muito arriscadas de tomada de poder que podem sair pela culatra. Por exemplo, invocar a Décima Quarta Emenda corre o risco de ser rejeitado pelo Supremo Tribunal. E, muito antes de isso poder acontecer, os republicanos do Congresso poderiam recusar-se a aprovar projetos de lei relativos a despesas básicas necessárias para manter o governo em funcionamento. Cunhar uma moeda de US$ 1 trilhão e depositá-la na Reserva Federal para contornar o Congresso colocaria o banco central numa posição insustentável.

O debate nunca foi sobre a dívida; é sobre poder. Se os republicanos chegarem ao poder em 2024 e acabarem por controlar a Câmara, o Senado e a Presidência, não há dúvida de que vão querer aprovar uma grande redução de impostos, aumentando a trajetória da dívida. Se os democratas recuperarem a Câmara e mantiverem a Presidência e o Senado, não há dúvida de que irão querer utilizar o financiamento da dívida para alargar a presença do Estado.

Os conservadores pensam que os déficits causados pelas reduções de impostos não são importantes porque incentivam o trabalho e o empreendedorismo, gerando assim um crescimento suficiente para pagar a dívida mais tarde. Os economistas de esquerda argumentam que, mesmo sem esses efeitos de incentivo, é provável que o crescimento ultrapasse os pagamentos de juros na maior parte do tempo, pelo que o peso da dívida nunca se torna algo significativo com que nos devamos preocupar.

A ideia de ambos os lados de que a dívida é sempre gratuita, desde que seja utilizada da forma “correta”, é de uma ingenuidade estonteante. As taxas de juro reais (ajustadas à inflação) caíram drasticamente após a crise financeira de 2008-2009, mantiveram-se baixas ao longo da década seguinte e voltaram a cair drasticamente durante a pandemia. Mas hoje as medidas prospetivas das taxas de juro reais, como as obrigações do Estado indexadas à inflação a dez anos, são muito mais elevadas nas economias avançadas do que eram durante os anos da pandemia. Além disso, o mundo tornou-se mais instável e é extremamente provável que muitos países ocidentais tenham de aumentar os gastos com a defesa, colocando mais tensões nos orçamentos.

Segundo o que ouvimos por parte dos comentaristas assumidamente democratas, os republicanos são 100% culpados pelo recente impasse. Isso é verdade. Também é verdade que o presidente Joe Biden fez uma campanha centrista e, depois, aproveitou dois anos com maiorias legislativas muito reduzidas para aprovar mudanças geracionais na política que prometem afetar o país durante anos. Os republicanos querem rever algumas dessas mudanças.

Os democratas contestam e dizem que os republicanos estão a tentar impedir o governo de contrair empréstimos para cobrir despesas que o Congresso já aprovou. Isso é um disparate; o governo pode sempre rever os seus planos de despesa a longo prazo. Mas um governo eficaz deve ser capaz de encontrar formas de chegar a acordos referentes à despesa a longo prazo que não estejam sujeitos a uma reavaliação constante.

Não é o caso do último acordo de última hora para aumentar o limite de endividamento dos EUA. Pelo contrário, com o país a caminho de uma desforra entre Biden e Trump no próximo ano - uma disputa que Trump poderá ganhar - qualquer trégua será provavelmente de curta duração.

*Kenneth Rogoff, ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional, é professor de Economia e Políticas Públicas na Universidade Harvard. Copyright: Project Syndicate, 2023.

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