quarta-feira, 7 de junho de 2023

Lu Aiko Otta - O papel dos três Poderes no ajuste fiscal

Valor Econômico

Episódios como a ajuda ao setor automotivo ofuscam as tentativas de se fazer um debate mais maduro sobre o uso do dinheiro público

Manter as contas públicas controladas não é, nem deveria ser, preocupação apenas da área econômica do governo. Seus integrantes afirmam que o novo arcabouço fiscal vai deixar mais evidente como decisões tomadas pelos três Poderes da República afetarão o retorno que o Estado brasileiro dará aos seus cidadãos pelos impostos recebidos.

Em conversa com o Valor, o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, explicou por quê. A regra fiscal atual, o teto de gastos, é pautada apenas por uma variável: a despesa. Existe em 2023 um limite de R$ 1,947 trilhão que, em tese, não pode ser ultrapassado. Se o andar da carruagem apontar para um estouro, bloqueiam-se recursos, como foi feito há duas semanas.

O novo arcabouço fiscal, em tramitação no Senado Federal, propõe uma nova lógica, pois é formado por três variáveis: receita, despesa e resultado primário. Isso quer dizer que o desempenho das receitas será importante para definir o espaço para as despesas e o saldo das contas públicas.

O arcabouço cria um novo teto de gastos, não tão rígido como o atual. Vai se mover a cada ano conforme o desempenho das receitas. Como regra básica, os gastos crescerão ao ritmo de 70% do aumento da arrecadação.

Assim, o que acontece com as receitas importa para o ajuste fiscal, destacou o secretário. Se o Judiciário dá uma decisão que tira bilhões de reais dos cofres públicos, isso tem impacto nos gastos públicos, exemplificou. Da mesma forma, se o Legislativo quiser cortar impostos de um determinado setor ou produto, haverá como consequência menos recursos para o Orçamento.

Ceron não questionou a legitimidade dessas decisões. Apenas apontou que o impacto delas nas políticas públicas ficará mais evidente. Nisso, repetiu o que tem dito seu chefe, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, desde a transição: o ajuste fiscal não é tarefa só do Executivo.

Essa tese foi levantada também no governo anterior, pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes. Em 2019, ele encaminhou ao Congresso um conjunto de propostas para ajustar as contas públicas, entre elas a criação de um Conselho Fiscal da República, que igualmente buscava compartilhar a responsabilidade pelo equilíbrio fiscal.

A grande novidade este ano na cena do ajuste fiscal é a presença mais forte de decisões judiciais. A vitória do governo no Superior Tribunal de Justiça (STJ), num contencioso envolvendo a dedução de incentivos fiscais estaduais da base de cálculo do Imposto de Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) fortaleceu a confiança de que será possível fechar este ano com um déficit menor do que os R$ 228 bilhões previstos no Orçamento.

Também na área de contenciosos entre fisco e contribuinte, desta vez na esfera administrativa, está a tentativa do governo de recuperar o poder de desempatar, a seu favor, disputas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Uma medida provisória (MP) que ia nessa direção perdeu a validade na semana passada. O governo aguarda votação de um projeto de lei com conteúdo semelhante. Enquanto isso, processos no valor de R$ 1,3 trilhão aguardam decisão.

Essa ênfase nas disputas judiciais reflete a agenda de Haddad, avaliou Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O atual governo decidiu fazer o ajuste fiscal com base no aumento da arrecadação, e não no corte de despesas. Por isso, o esforço em buscar receitas novas.

E há muitos bolsos a remexer, porque o governo anterior focava o ajuste nas despesas. Houve, avaliou Pires, uma certa leniência pelo lado das receitas.

Um exemplo citado por ele é uma decisão tomada pelo Judiciário em 2018, que excluiu o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) da base de cálculo das contribuições PIS/Cofins. Provocou uma perda bilionária para a União ao longo dos anos seguintes.

Mas havia um ponto da decisão que não ficara claro: se os créditos tributários do PIS/Cofins também deveriam perder a parcela correspondente ao ICMS, o que traria ganho de receitas. Essa interpretação foi colocada em uma MP, que caducou. Porém, seus dispositivos pegaram carona em outra proposição e foram aprovados.

Até o momento, Haddad tem sido feliz em suas iniciativas para aumentar receitas, avaliou Pires. Elas tiveram o cuidado de não criar pontos de atrito com o sistema tributário que se quer implementar, com a reforma que a Câmara pretende votar nas próximas semanas.

“A questão é se isso não gera fadiga política, como o teto gerou”, observou Pires. Dado que o arcabouço opera com receitas e despesas, não há por que utilizar só um desses elementos, comentou.

Nesta semana, no sentido oposto ao da estratégia de ajuste fiscal, o governo criou um novo gasto tributário. Abriu mão de R$ 1,5 bilhão para apoiar a indústria automobilística.

Além disso, segue malparada a relação entre o Planalto e o Congresso Nacional, por causa da gestão de emendas parlamentares ao Orçamento.

São episódios assim que ofuscam as tentativas de se fazer um debate mais maduro sobre o uso do dinheiro público. Mas já passa da hora de a conversa mudar de nível.

 

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