sábado, 17 de junho de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Sociedade da despersonalização

Carta Capital

O morador de rua e o trabalho escravo retratam a destruição ideológica do conceito de pessoa

O filósofo italiano Roberto ­Fineschi, no livro Capitalismo Crepusculare, lança uma indagação crucial. “Na perspectiva do indivíduo moderno, o que se pode fazer para ser pessoa?” Fineschi responde: “Tenha uma renda”.

Em meio à leitura das considerações filosóficas de Fineschi, fui informado que 62 mil paulistanos sobrevivem como moradores de rua, desprovidos de um emprego ou atividade que lhes proporcione uma renda monetária.

Não bastassem as dores dos que vivem na rua, o Brasil registra inúmeros casos de trabalho escravo. Entre tantos, são chocantes os episódios que registram a escravidão de empregadas domésticas a serviço dos bacanas do pedaço.

Fineschi segue perseguindo as agruras dos homens que não conseguem alcançar a condição de pessoas no capitalismo contemporâneo: “Como se pode obter um rendimento se as condições de emprego não existem? Aqui começa estruturalmente uma dinâmica pela qual muitos indivíduos estão inclinados a ter uma renda de qualquer forma; ilegal não significa simplesmente trabalhar ilegalmente, mas também significa recomendação, ter uma pensão graças ao primo do ministro etc., etc., todas as dinâmicas que permitem que você seja gente tendo uma renda. Mas – e este é o ponto decisivo – ter este rendimento e ser pessoa viola o próprio conceito de pessoa porque não se respeita, mesmo a nível formal, a liberdade e a igualdade das outras pessoas”.

O mesmo sistema que cria a ideologia da pessoa e da personalidade determina condições materiais sob as quais é estruturalmente impossível que todos se tornem pessoas. Assim, a conquista da personalidade e da pessoa não é determinada por suas condições subjetivas, senão pelas condições sociais e materiais. Na verdade, essas determinações da vida social cuidam de impedir que os indivíduos possam desenvolver uma personalidade reconhecida socialmente.

Estamos diante da manifestação escancarada do processo de abstração real que opera nos subterrâneos das sociedades capitalistas e deforma suas superfícies. Na verdade, diz um outro filósofo, ­Roberto ­Finelli, a abstração real não se opõe ao mundo do concreto, não o força ou o obriga como força externa, mas o coloniza por dentro, o assimila às suas leis. A abstração real é um vetor da realidade nem visível nem tangível: tão invisível que, em sua construção da realidade, essa força subterrânea só pode produzir o esvaziamento ­real do concreto. Isso significa que, simultaneamente, produz e dissimula realidade.

Na interioridade da realidade, dominada pela abstração, pelo concreto naturalizado, o ser humano se perde, pois tudo se traduz em funções econômicas de produção e reprodução do abstrato. Mas essas funções econômicas do abstrato têm a face do concreto, que, em vez de ser aniquilado, como uma dialética do negativo gostaria, foi desvitalizado e esvaziado.

O conceito de abstração real condensa com propriedade a natureza do processo de constituição da estrutura e dinâmica do capitalismo. Vamos considerar as cadeias globais de valor. Esse movimento ocorre na estrita obediência às normas do capitalismo enquanto sistema, cujo objetivo é a acumulação de riqueza abstrata, monetária. Ou seja, não se trata de produzir e gerar abundância e conforto material para os indivíduos e suas vidas, mas de produzir mercadorias concretas, particulares, úteis ou inúteis, com o propósito de acumular dinheiro. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa. O problema é que, frequentemente, a mesma coisa não é a mesma para países, seus trabalhadores e suas empresas.

Não importa onde e o que produzir, mas distribuir e organizar a produção nos espaços que permitam a maximização dos resultados monetários ambicionados por grandes empresas e bancos que controlam os instrumentos de produção e o dinheiro. As condições de vida dos habitantes dos espaços fracionados, abandonados ou ocupados, são mera consequência, boa ou má, dos movimentos da abstração real.

Retornamos a Roberto Fineschi: “torna-se uma prática em massa violar a personalidade para impedi-la de ser uma pessoa. É uma dinâmica contraditória que culmina na destruição ideológica do conceito de pessoa ou, pelo menos, de sua universalidade. As consequências dessa práxis social são fundamentais porque ideologicamente elas se tornam o pano de fundo do fascismo ou de qualquer ideo­logia racista.”

É curioso observar como a sociedade na qual sobrevivemos, ao transformar os indivíduos e suas subjetividades em simples coágulos monetários, pretenda, ao mesmo tempo, colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Como podemos falar de honradez, dignidade, autorrespeito, em uma sociedade na qual todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular? 

*Economista

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