sábado, 10 de junho de 2023

Marco Antonio Villa - Presidencialismo raptado

Revista IstoÉ

Com Jair Boldsonaro na Presidência – se é que podemos chamar o último quadriênio presidencial de Presidência no sentido clássico – ocorreu não só um desmonte da estrutura estatal como um confronto com os outros dois Poderes como nunca tinha ocorrido desde a promulgação da Constituição de 1988.

Na relação específica com o Legislativo, principalmente no último biênio da Presidência, houve um inédito pacto anti-impeachment que andou pela transferência de atribuições do Executivo para o Legislativo. O presidente da Câmara dos Deputados passou a ser, informalmente, um primeiro-ministro sem ter autorização legal, ou melhor, respaldo constitucional.

Um ministro para ter a liberação de verbas do seu ministério não ia ao Palácio do Planalto, mas à sala do presidente da Câmara dos Deputados. Foi uma espécie de semipresidencialismo improvisado, de viés mais para tergiversar os impeditivos constitucionais do que uma solução original para alguns entraves nas relações entre os dois Poderes.

Surgiram mecanismos supostamente legais, como o orçamento secreto e as emendas-pix. Tudo à margem da lei, como se fosse um golpe da velha malandragem, aquela retratada no clássico Malagueta, perus e bacanaço de João Antonio. Nada muito sofisticado. De secreto teve pouco.

Foi tudo às claras e revelado com amplas informações e detalhes impossíveis de serem negados. Em seguida, num aperfeiçoamento desse sistema absolutamente antirrepublicano, surgiu uma inovação: a emenda pix, que não permite acompanhar como o recurso público vai ser gasto violando explicitamente, no mínimo, o artigo 37 da Constituição.

Esse arranjo oportunista, restrito a um presidente que não tinha compromisso com os valores republicanos, acabou gerando um monstro. O presidente da República fica de mãos atadas, como se vigorasse no Brasil um semipresidencialismo tupiniquim, mais ao estilo português do que o francês. Vale destacar que nenhum dos dois estão inscritos na Constituição.

Assim, o presidente da Câmara – no caso do Senado a relação é mais republicana – acabou obtendo poderes absolutamente inconstitucionais, usurpando a vontade popular expressa nas urnas quando das eleições de outubro.

Numa linguagem mais direta, Arthur Lira sequestrou (politicamente falando) o voto de milhões de eleitores. Não custa lembrar que ele é apenas um dos 513 deputados federais. Esse impasse vai ter de ser rapidamente resolvido sob o risco de ocorrer um enfrentamento, no limite, entre os poderes Executivo e Legislativo.

2 comentários:

  1. ■Sim, o presidencialismo no Brasil está capturado pelo Congresso!
    ▪Mas eu tendo a achar que o que se passa mais recentemente, com o Bolsonaro I e com este Lula III, é o explicitamento de um processo de esgotamento do regime presidencialista no Brasil que já vem ocorrendo desde a reabertura política.

    ■Durante o regime militar o Brasil não teve presidentes da república e no executivo federal essa função foi exercida por ditadores e com a negação da política. O que nós podemos chamar mais propriamente de política já vem sendo exercida no Brasil quase unicamente pelo Congresso e pelos parlamentares desde 1964 ou antes.

    Um intervalo "presidencialista" entre 1964e2023 foi o período Fernando Henrique, uma gestão executiva que foi mais no modelo "governo de filósofos" de Platão, apenas que referendada eleitoralmente, e que conseguiu funcionar por contingências até o Lula I e basicamente com os mesmos tecnicos.

    Depois o "presidencialismo", em Lula II e em Dilma I e II, foi sustentado por artifícios nada republicanos e democráticos, como o "Mensalão" e "Petrolão", vigorando desde aí e em diante o presidencialismo de execução de gastos orçamentários e extra-orçamentários definidos por parlamentares ou, quando decididos os gastos diretamente pelos presidentes Lula II e Dilma, essa decisão foi concedida aos presidentes pelo parlamento mediante suborno a parlamentares.

    ■Não seria, deveras, o Regime Presidencialista um arranjo esgotado no Brasil --e se esgotando nos Estados Unidos e em outros recantos do mundo-- e o regime politico brasileiro e outros é que precisam encontrar sua atualização dentro do capitalismo e da democracia liberal antes que o poder no Brasil (e em outros lugares) seja hegemonizado por forças politicas avulsas, como os populismos lulista ou bolsonarista, senão por, menos provável, setores mais fundamentalistas do espectro político que flutuam no entorno dessas forças populistas?

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