Eu & / Valor Econômico
Quem acredita que o diplomata foi o mentor
da política externa que coloca o interesse nacional acima da ideologia deveria
lê-lo. Quem acredita no inverso, também
Num espaço de duas semanas o mundo terá
assistido ao indiciamento de Donald Trump, à renúncia de Boris Johnson ao
parlamento britânico, à morte de Silvio Berlusconi e ao iminente julgamento de
Jair Bolsonaro no TSE.
A tormenta do populismo de extrema direita
já bastaria para a leitura do mais recente livro de Henry Kissinger,
“Liderança” (Objetiva, 2023). Conselheiro de quase todos os presidentes
americanos desde Richard Nixon, foi em sua passagem como assessor de segurança
nacional e secretário de Estado deste último que os Estados Unidos
restabeleceram relações com a China.
A iniciativa projetou um triângulo numa
guerra fria crescentemente polarizada e deu a Kissinger, com 100 anos
recém-completados, a fama de mentor de uma política externa que coloca o interesse
nacional acima da ideologia, valor abandonado pela extrema direita que emergiu
no século XXI.
Quem acredita que Kissinger fez o inverso
tem razões igualmente fortes para encarar o livro. O decano da diplomacia
americana também revela o apelo ideológico com que validou o apoio a ditaduras
latino-americanas.
Ao fazê-lo, dá uma aula de como manejou os instrumentos da diplomacia e da guerra para projetar o poder de seu país de adoção - a começar pelos critérios que guiaram a escolha dos perfis a que se dedica: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margareth Thatcher.
São todos egressos da classe média, dois
deles haviam sido presos antes de assumir o poder (De Gaulle e Sadat), eram
dotados de autocontrole e depurada intuição para não se deixarem paralisar pela
busca de consensos e tomavam decisões norteadoras do rumo de seus países
sozinhos. Kissinger enumera os atributos - e defeitos - na condição de quem os
conheceu de perto.
A começar por Thatcher, cuja renúncia
define como “pior do que morte na família”. É o mais alentado dos seis perfis e
único momento em que o Brasil aparece, ainda que marginalmente. Surge como
destino da família de Edith, a garota austríaca de ascendência judaica abrigada
pelos pais de Thatcher na ascensão do nazismo.
Se o Brasil está ausente, a Argentina tem
um registro revelador nas anotações de Kissinger sobre a resistência de Ronald
Reagan a apoiar o Reino Unido na Guerra das Malvinas.
A primeira-ministra britânica era a única
pessoa a quem Reagan ouvia fora dos EUA. Ainda assim, resistia a apoiá-la em
função das relações estreitas e, segundo o próprio Kissinger, “clandestinas”,
com a junta militar argentina.
Contrariando a advertência da CIA, de que
uma derrota do general Galtieri levaria à sua substituição por um regime
pró-soviético, Kissinger defendeu o apoio à amiga. Reagan seguiu-o, levando a
um estremecimento com a Argentina que, ao contrário do previsto pela CIA, nunca
passou à órbita soviética.
Se os americanos correram risco na
Argentina, não fizeram o mesmo quando Gamal Nasser nacionalizou o canal de
Suez. Reino Unido e França invadiram o Egito para retomar o canal, mas, sem
apoio dos EUA, que temiam o avanço soviético na região, foram obrigados a
recuar. Kissinger sugere que Thatcher engoliu o desaforo em nome do apoio
militar americano que tornou o Reino Unido potência nuclear.
O sucessor de Nasser, Anwar Sadat, é outro
dos perfilados que parece ter conquistado seu lugar na coletânea por ter sido
parceiro de Kissinger no tratado de paz com Israel que rendeu um Prêmio Nobel
da Paz para o líder egípcio. O diplomata americano viu em Sadat a oportunidade
de mitigar a influência soviética no país. Folga em contar a atitude de Sadat
de levantar-se, no meio de um jantar no Kremlin, depois de uma cobrança de
Khrushev considerada abusiva pelo líder egípcio.
A personalidade de Sadat é resumida na
última conversa antes de seu assassinato por fundamentalistas islâmicos. Depois
de convidar Kissinger para a celebração da devolução do monte Sinai pelos israelenses
ao Egito, volta atrás: “Melhor não. Será muito doloroso para os israelenses
abrir mão desse território. Magoaria demais o povo judeu vê-lo comemorando
conosco. Venha um mês depois. Então o senhor e eu poderemos ir sozinhos ao
monte Sinai, onde pretendo construir uma sinagoga, uma mesquita e uma igreja”.
O mais autoritário dos líderes perfilados
por Kissinger é o criador de Cingapura, Lee Kuan Yiew. Kissinger aproximou-se
dele quando Lee foi fazer um sabático em Harvard e se insurgiu contra a visão,
a seu ver, excessivamente crítica da condução da Guerra do Vietnã. Acreditava
que países pequenos, como Cingapura, dependiam dos EUA para conter “guerrilhas
comunistas”.
Foi música para os ouvidos de Kissinger,
que, apesar do Nobel da Paz pela saída dos EUA do Vietnã, tem seu legado
amplamente contestado. Lee também tocou uma aliança nos conflitos do sudeste
asiático, para conter o assédio soviético e chinês. A aliança com os EUA e a
prosperidade de Cingapura relativizam seu autoritarismo aos olhos do autor.
Kissinger releva as eleições (“não são democráticas mas não são desprovidas de
significado”) e recorre ao adágio de Alexander Pope: “Que os tolos discutam
formas de governo; o melhor é o mais bem administrado”.
Se a inspiração confucionista levara Lee a
mandar destruir a casa em que morava depois da sua morte para evitar que viesse
a se transformar num lugar de peregrinação, não evitou a proteção à carreira
política do filho. Kissinger registra sua frieza em relação ao próprio legado
como o reconhecimento de que fizera “coisas horríveis” como prender pessoas sem
julgamento.
Se Thatcher é enaltecida por ter servido de
ponte entre os EUA e Mikhail Gorbachev, Lee também o é por ter prevenido que a
China, sob Deng Xiaoping, deveria ser engajada, não contida. Cingapura exportou
suas práticas de gestão para o país vizinho e beneficiou-se de seu crescimento.
O capítulo dedicado ao primeiro presidente
americano ao qual Kissinger serviu levanta a dúvida se Nixon havia se
arrependido da aproximação com a China. Kissinger diz que não.
Descreve o início da aproximação entre os
dois países, por meio de mensageiros na rota Washington-Islamabad-Pequim, e faz
defesa rasgada do seu legado: “Qualquer política dos EUA em relação à China
deve ter lugar no contexto de sua vasta economia - comparável à dos EUA -, seu
poderio militar crescente e sua habilidade em uma diplomacia talhada para
preservar milhares de anos de cultura singular”.
O perfil de Nixon, o único presidente da
história americana a ser obrigado a renunciar, o retrata como o antípoda de
Donald Trump e seu “America First” (América primeiro) por vislumbrar um mundo
melhor com cinco potências (EUA, Europa Ocidental, a antiga URSS, China e
Japão) do que com duas.
Kissinger vale-se da pressão doméstica
americana contra o comunismo para justificar a corrida armamentista e beira a
autocrítica em alguns temas, como o Vietnã, mas em nenhum momento reconhece que
o agigantamento da Otan, contrariando o pacto do pós-guerra, possa ter
contribuído para a ofensiva russa contra a Ucrânia como advertira George
Kennan.
A contenção via Otan, que se valeu de uma
Europa traumatizada pela Segunda Guerra, é o eixo dos perfis dos dois líderes
europeus do livro, Konrad Adenauer, primeiro sucessor de Adolf Hitler, e
Charles de Gaulle. Confessa que ambos lhe cobravam pela guerra no Vietnã e não
escamoteia a admiração pela estratégia da humildade de um e a coragem do outro.
Define a primeira em quatro passos: aceitar
as consequências da derrota, reconquistar a confiança dos vitoriosos, construir
uma sociedade democrática e criar uma federação continental, semente do que
viria a ser a União Europeia. O quinto passo, inconfessável, era a contenção
soviética como parte de um jogo doméstico acossado pelos social-democratas e
seus laços soviéticos.
Dos seis, aquele por quem Kissinger parece
ter uma admiração quase lírica é De Gaulle, que é também, entre os perfilados,
o mais crítico dos Estados Unidos. Cita a condição imposta por De Gaulle para
aceitar subvenções britânicas - desde que por empréstimo -, para a resistência
em Londres.
Justifica ainda o triunfalismo dos
discursos de De Gaulle, na retomada da França, pela necessidade de transformar,
na cabeça do público, uma expedição anglo-americana em uma singular vitória
francesa. Cita Churchill (“De Gaulle se acha Joana d’Arc, mas meus malditos
bispos não me deixam queimá-lo”) mas acaba ficando com sua própria definição de
que para o líder francês, a política não era a arte do possível, mas dos
determinados.
É com esta determinação que De Gaulle é
reconduzido de volta ao poder em 1958 para empreender a descolonização como
parte de uma “missão civilizatória francesa”. Ao enfrentar épicos atentados sem
curvar seus 2 metros de altivez, deu simbolismo à missão.
Kissinger relega a pé de página a descrição
das casas de campo de Churchill e de De Gaulle para diferenciar suas
personalidades: “Chartwell era um refúgio onde uma vida relaxada e sociável
favorecia a realização intelectual e o ambiente agradável encorajava a conversa
com amigos de confiança. Colombey-les-Deux-Églises era um refúgio austero para
a solidão e a reflexão”.
Nenhum dos líderes parece se encaixar melhor na frase do filósofo grego Epíteto que Kissinger pinça para concluir o livro do que De Gaulle: “Não podemos escolher nossas circunstâncias externas, mas podemos sempre escolher como reagir a elas”.
Excelente artigo da grande colunista.
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