sábado, 17 de junho de 2023

Maria Cristina Fernandes - A liderança, segundo Kissinger

Eu & / Valor Econômico

Quem acredita que o diplomata foi o mentor da política externa que coloca o interesse nacional acima da ideologia deveria lê-lo. Quem acredita no inverso, também

Num espaço de duas semanas o mundo terá assistido ao indiciamento de Donald Trump, à renúncia de Boris Johnson ao parlamento britânico, à morte de Silvio Berlusconi e ao iminente julgamento de Jair Bolsonaro no TSE.

A tormenta do populismo de extrema direita já bastaria para a leitura do mais recente livro de Henry Kissinger, “Liderança” (Objetiva, 2023). Conselheiro de quase todos os presidentes americanos desde Richard Nixon, foi em sua passagem como assessor de segurança nacional e secretário de Estado deste último que os Estados Unidos restabeleceram relações com a China.

A iniciativa projetou um triângulo numa guerra fria crescentemente polarizada e deu a Kissinger, com 100 anos recém-completados, a fama de mentor de uma política externa que coloca o interesse nacional acima da ideologia, valor abandonado pela extrema direita que emergiu no século XXI.

Quem acredita que Kissinger fez o inverso tem razões igualmente fortes para encarar o livro. O decano da diplomacia americana também revela o apelo ideológico com que validou o apoio a ditaduras latino-americanas.

Ao fazê-lo, dá uma aula de como manejou os instrumentos da diplomacia e da guerra para projetar o poder de seu país de adoção - a começar pelos critérios que guiaram a escolha dos perfis a que se dedica: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Nixon, Anwar Sadat, Lee Kuan Yew e Margareth Thatcher.

São todos egressos da classe média, dois deles haviam sido presos antes de assumir o poder (De Gaulle e Sadat), eram dotados de autocontrole e depurada intuição para não se deixarem paralisar pela busca de consensos e tomavam decisões norteadoras do rumo de seus países sozinhos. Kissinger enumera os atributos - e defeitos - na condição de quem os conheceu de perto.

A começar por Thatcher, cuja renúncia define como “pior do que morte na família”. É o mais alentado dos seis perfis e único momento em que o Brasil aparece, ainda que marginalmente. Surge como destino da família de Edith, a garota austríaca de ascendência judaica abrigada pelos pais de Thatcher na ascensão do nazismo.

Se o Brasil está ausente, a Argentina tem um registro revelador nas anotações de Kissinger sobre a resistência de Ronald Reagan a apoiar o Reino Unido na Guerra das Malvinas.

A primeira-ministra britânica era a única pessoa a quem Reagan ouvia fora dos EUA. Ainda assim, resistia a apoiá-la em função das relações estreitas e, segundo o próprio Kissinger, “clandestinas”, com a junta militar argentina.

Contrariando a advertência da CIA, de que uma derrota do general Galtieri levaria à sua substituição por um regime pró-soviético, Kissinger defendeu o apoio à amiga. Reagan seguiu-o, levando a um estremecimento com a Argentina que, ao contrário do previsto pela CIA, nunca passou à órbita soviética.

Se os americanos correram risco na Argentina, não fizeram o mesmo quando Gamal Nasser nacionalizou o canal de Suez. Reino Unido e França invadiram o Egito para retomar o canal, mas, sem apoio dos EUA, que temiam o avanço soviético na região, foram obrigados a recuar. Kissinger sugere que Thatcher engoliu o desaforo em nome do apoio militar americano que tornou o Reino Unido potência nuclear.

O sucessor de Nasser, Anwar Sadat, é outro dos perfilados que parece ter conquistado seu lugar na coletânea por ter sido parceiro de Kissinger no tratado de paz com Israel que rendeu um Prêmio Nobel da Paz para o líder egípcio. O diplomata americano viu em Sadat a oportunidade de mitigar a influência soviética no país. Folga em contar a atitude de Sadat de levantar-se, no meio de um jantar no Kremlin, depois de uma cobrança de Khrushev considerada abusiva pelo líder egípcio.

A personalidade de Sadat é resumida na última conversa antes de seu assassinato por fundamentalistas islâmicos. Depois de convidar Kissinger para a celebração da devolução do monte Sinai pelos israelenses ao Egito, volta atrás: “Melhor não. Será muito doloroso para os israelenses abrir mão desse território. Magoaria demais o povo judeu vê-lo comemorando conosco. Venha um mês depois. Então o senhor e eu poderemos ir sozinhos ao monte Sinai, onde pretendo construir uma sinagoga, uma mesquita e uma igreja”.

O mais autoritário dos líderes perfilados por Kissinger é o criador de Cingapura, Lee Kuan Yiew. Kissinger aproximou-se dele quando Lee foi fazer um sabático em Harvard e se insurgiu contra a visão, a seu ver, excessivamente crítica da condução da Guerra do Vietnã. Acreditava que países pequenos, como Cingapura, dependiam dos EUA para conter “guerrilhas comunistas”.

Foi música para os ouvidos de Kissinger, que, apesar do Nobel da Paz pela saída dos EUA do Vietnã, tem seu legado amplamente contestado. Lee também tocou uma aliança nos conflitos do sudeste asiático, para conter o assédio soviético e chinês. A aliança com os EUA e a prosperidade de Cingapura relativizam seu autoritarismo aos olhos do autor. Kissinger releva as eleições (“não são democráticas mas não são desprovidas de significado”) e recorre ao adágio de Alexander Pope: “Que os tolos discutam formas de governo; o melhor é o mais bem administrado”.

Se a inspiração confucionista levara Lee a mandar destruir a casa em que morava depois da sua morte para evitar que viesse a se transformar num lugar de peregrinação, não evitou a proteção à carreira política do filho. Kissinger registra sua frieza em relação ao próprio legado como o reconhecimento de que fizera “coisas horríveis” como prender pessoas sem julgamento.

Se Thatcher é enaltecida por ter servido de ponte entre os EUA e Mikhail Gorbachev, Lee também o é por ter prevenido que a China, sob Deng Xiaoping, deveria ser engajada, não contida. Cingapura exportou suas práticas de gestão para o país vizinho e beneficiou-se de seu crescimento.

O capítulo dedicado ao primeiro presidente americano ao qual Kissinger serviu levanta a dúvida se Nixon havia se arrependido da aproximação com a China. Kissinger diz que não.

Descreve o início da aproximação entre os dois países, por meio de mensageiros na rota Washington-Islamabad-Pequim, e faz defesa rasgada do seu legado: “Qualquer política dos EUA em relação à China deve ter lugar no contexto de sua vasta economia - comparável à dos EUA -, seu poderio militar crescente e sua habilidade em uma diplomacia talhada para preservar milhares de anos de cultura singular”.

O perfil de Nixon, o único presidente da história americana a ser obrigado a renunciar, o retrata como o antípoda de Donald Trump e seu “America First” (América primeiro) por vislumbrar um mundo melhor com cinco potências (EUA, Europa Ocidental, a antiga URSS, China e Japão) do que com duas.

Kissinger vale-se da pressão doméstica americana contra o comunismo para justificar a corrida armamentista e beira a autocrítica em alguns temas, como o Vietnã, mas em nenhum momento reconhece que o agigantamento da Otan, contrariando o pacto do pós-guerra, possa ter contribuído para a ofensiva russa contra a Ucrânia como advertira George Kennan.

A contenção via Otan, que se valeu de uma Europa traumatizada pela Segunda Guerra, é o eixo dos perfis dos dois líderes europeus do livro, Konrad Adenauer, primeiro sucessor de Adolf Hitler, e Charles de Gaulle. Confessa que ambos lhe cobravam pela guerra no Vietnã e não escamoteia a admiração pela estratégia da humildade de um e a coragem do outro.

Define a primeira em quatro passos: aceitar as consequências da derrota, reconquistar a confiança dos vitoriosos, construir uma sociedade democrática e criar uma federação continental, semente do que viria a ser a União Europeia. O quinto passo, inconfessável, era a contenção soviética como parte de um jogo doméstico acossado pelos social-democratas e seus laços soviéticos.

Dos seis, aquele por quem Kissinger parece ter uma admiração quase lírica é De Gaulle, que é também, entre os perfilados, o mais crítico dos Estados Unidos. Cita a condição imposta por De Gaulle para aceitar subvenções britânicas - desde que por empréstimo -, para a resistência em Londres.

Justifica ainda o triunfalismo dos discursos de De Gaulle, na retomada da França, pela necessidade de transformar, na cabeça do público, uma expedição anglo-americana em uma singular vitória francesa. Cita Churchill (“De Gaulle se acha Joana d’Arc, mas meus malditos bispos não me deixam queimá-lo”) mas acaba ficando com sua própria definição de que para o líder francês, a política não era a arte do possível, mas dos determinados.

É com esta determinação que De Gaulle é reconduzido de volta ao poder em 1958 para empreender a descolonização como parte de uma “missão civilizatória francesa”. Ao enfrentar épicos atentados sem curvar seus 2 metros de altivez, deu simbolismo à missão.

Kissinger relega a pé de página a descrição das casas de campo de Churchill e de De Gaulle para diferenciar suas personalidades: “Chartwell era um refúgio onde uma vida relaxada e sociável favorecia a realização intelectual e o ambiente agradável encorajava a conversa com amigos de confiança. Colombey-les-Deux-Églises era um refúgio austero para a solidão e a reflexão”.

Nenhum dos líderes parece se encaixar melhor na frase do filósofo grego Epíteto que Kissinger pinça para concluir o livro do que De Gaulle: “Não podemos escolher nossas circunstâncias externas, mas podemos sempre escolher como reagir a elas”.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Excelente artigo da grande colunista.