O Globo
Especialistas se reúnem em Minas Gerais
para discutir formas de preservar o bioma e assim proteger o muriqui, o maior
primata das Américas
A Mata Atlântica venceu dois ataques nos
últimos dias. Na terça, dia 13, o STF decidiu, por unanimidade, não conhecer a
Ação Direta de Inconstitucionalidade movida por Jair Bolsonaro contra a Lei da
Mata Atlântica. No dia 5, o presidente Lula vetou dispositivos da lei aprovada
no Congresso que facilitavam o desmate. Milagrosamente, a Mata Atlântica
resiste. Como ela resiste? Nesse fim de semana, Caratinga, em Minas Gerais,
tinha a resposta. Um grande seminário de cientistas foi realizado na cidade, na
sexta e ontem, para comemorar os 40 anos de pesquisas sistemáticas em torno do
muriqui-do-norte, o maior primata das Américas. Essa história animadora,
vibrante, exemplar, não tem apenas 40 anos. O visionário produtor rural,
Feliciano Miguel Abdala, decidiu nos anos 1940, há quase 80 anos, proteger mil
hectares de mata e, dentro dela, uma população de macacos.
Primatólogos do Brasil e do mundo passaram a visitar a cidade para estudar os muriquis nos anos 1970. Um deles sempre presente foi o americano Russell Mittermeier, ex-dirigente da WWF e da Conservação Internacional, e hoje na Re:wild. E foi ele que sugeriu a uma estudante de Harvard, Karen Strier, que viesse fazer em Caratinga o seu doutorado.
Karen fez o doutorado no começo dos anos
1980 e implantou uma pesquisa inovadora, não invasiva, que coletou um mar de
informação sobre esses primatas. Karen passou a treinar estudantes brasileiros
em seus projetos de mestrado e doutorado. O conhecimento se multiplicou e se
espalhou pelo país. Aquele pedaço de mata protegido por Feliciano virou Reserva
Particular do Patrimônio Natural (RPPN), e estação biológica. Há quarenta anos
lá se faz ciência e conservação. Biólogos e primatólogos que passaram pelo
Projeto Muriqui de Caratinga comandam hoje outros projetos de conservação e
centros de pesquisa em outras cidades e estados.
Karen concilia as temporadas de pesquisa no
Brasil e sua carreira de professora da Universidade de Wisconsin-Madinson. Seus
estudos, e os que deles decorreram, revelaram muito do que se sabe sobre esse
primata. Eles são pacíficos, cooperativos, não têm diferenciação de gênero, nem
mesmo no tamanho, são as fêmeas que migram para evitar a consanguinidade, os
machos não entram em conflito pelas fêmeas, nem por território. Saber que são
as fêmeas que migram tem ajudado no manejo para salvar grupos dessa espécie
ameaçada de extinção. Nesse projeto há a maior população e a mais viável, capaz
de sobreviver sem a necessidade de manejo. Apesar de tudo, os muriquis e outros
primatas da região foram duramente castigados pela seca de 2014 e 2015 e pela
onda de febre amarela.
Durante o seminário, Russell Mittermeier
disse que o Brasil é o país mais importante para os primatas e para a
primatologia no mundo. E explicou: o Brasil é o país que tem mais diversidade
de primatas, são 155 espécies, e a Sociedade Brasileira de Primatologia é uma
das maiores e das mais importantes e influentes no mundo.
Os descendentes de Feliciano Miguel Abdala
continuam protegendo os mil hectares de terra. A mata cresceu e ficou mais
exuberante. O neto de Feliciano, Ramiro, fundou a ONG Preserve Muriqui, hoje
dirigida pelo bisneto, Rodrigo, que tem produzido milhares de mudas para
replantar no entorno. O muriqui só vive nesse bioma e é, ao mesmo tempo, um
eficiente dispersor das árvores. No esforço para preservá-lo cresce a área de
vegetação nativa. A luta agora é pelos corredores ecológicos ligando
fragmentos.
Há quinhentos anos a Mata Atlântica é
atacada. A ferro e fogo, como disse o escritor Warren Dean em seu livro
clássico. Há 500 anos, ela luta para permanecer. A resistência tem vindo de
iniciativas como a desse fazendeiro que sabia, há 80 anos, que a produção pode
conviver com a proteção. Existem hoje na Mata Atlântica 1300 RPPNs que protegem
240 mil hectares. Vem de cientistas e ambientalistas como os que estiveram na
cidade contando das novas iniciativas e novas tecnologias usadas na proteção. O
bioma ainda tem 12% da cobertura original. Nesses últimos dois dias, eu vi em
Caratinga uma das formas pelas quais ela resiste, unindo a conservação e a
ciência em uma história louvável e longeva. História que me dá particular
orgulho porque eu nasci em Caratinga.
Que história bonita!
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