domingo, 11 de junho de 2023

Míriam Leitão - Marco temporal e o tempo sem lei

O Globo

Enquanto o STF não decide e o Congresso está tentando mudar a Constituição, os povos indígenas continuam correndo risco

Raoni Metuktire chega cedo em seus compromissos. Apareceu antes da hora no evento do Dia do Meio Ambiente, no Palácio do Planalto, na segunda-feira, 5. Sentou-se bem na frente. Estava ali para conseguir uma audiência com o presidente Lula e falar do assunto que preocupa seu povo e todos os povos indígenas, o marco temporal. Na quarta, 7, meia hora antes da sessão do Supremo, Raoni já estava sentado na plateia. Do lado, Bemoro, seu tradutor, do outro Yabuti Metuktire, todos da terra indígena Capoto Jarina.

Na segunda, ele ficou atento a tudo e, de vez em quando, falava no idioma mebêngôkre com Bemoro. Houve um momento em que um assessor do presidente chegou e eles saíram juntos para dentro do Palácio. No início da cerimônia ele foi levado para o palco, junto a uma líder indígena. Quando Lula fez a primeira menção aos povos indígenas eles se levantaram e colocaram um colar no presidente. Com gestos simbólicos, conversas de bastidores e muitas manifestações de rua, na semana passada, os indígenas lutaram contra o que para eles parece o fim do mundo, o marco temporal.

Antes de se sentar no plenário do STF, Raoni havia conseguido falar com pelo menos um ministro do Supremo. Espalhadas pelo auditório, várias etnias coloriam o ambiente, sempre repleto de ternos uniformes. Para eles, é questão de vida ou morte saber se aquela interpretação restrita da Constituição passaria a valer no Brasil. Por isso estavam todos mobilizados, inclusive o velho cacique Kayapó.

O ministro Alexandre de Moraes participou da audiência remotamente e tentou um inexistente caminho do meio entre o voto do relator, Edson Fachin, e o do ministro Nunes Marques. De mais importante na sua fala foi o reconhecimento de que a proteção constitucional aos direitos originários sobre terras que os indígenas “tradicionalmente ocupam” independe do marco temporal. Afastava, portanto, a tese de que indígenas só podem reivindicar terras onde estavam no dia 5 de outubro de 1988. O ministro André Mendonça alegou que precisava pensar sobre o voto de Alexandre de Moraes e pediu vistas. Nenhuma surpresa. Todo mundo sabia que ele tentaria parar o julgamento.

Há quem defenda a ideia equivocada de que o STF está legislando, porque o Congresso está debruçado sobre esta matéria. É obrigação indeclinável da corte constitucional interpretar a Constituição. Este é seu dever institucional. O artigo 231 da Carta Magna foi escrito para garantir o direito dos indígenas, e não apenas a partir da sua promulgação. A excelente reportagem de Paulo Celso Pereira, em O GLOBO, investigou os debates na Constituinte, as palavras do relator do artigo 231, senador Jarbas Passarinho, e entrevistou ex-constituintes. A resposta que o jornalista trouxe é que não se pensou em um marco temporal.

No Congresso tramita o PL 490, já aprovado em regime de urgência na Câmara. Foi agora para o Senado sem passar pela Comissão de Direitos Humanos, mas com a promessa do senador Rodrigo Pacheco de que não haverá açodamento. Por óbvio, um PL não modifica a Constituição, nem pode regulamentar um artigo de maneira oposta ao que está escrito. Mas é isso que o Congresso está tentando.

Entrevistei a antropóloga Beatriz Matos, diretora do Departamento de Proteção Territorial e dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas. Ela é viúva de Bruno Pereira. Beatriz explicou o lado mais terrível do PL 490.

— O PL diz que pode ser realizado o contato com povos isolados por interesse econômico. Isso repetiria o que aconteceu na década de 70, em que foi forçado o contato e muitos indígenas, e até povos inteiros, morreram. E, claro, o povo indígena isolado não tem nenhuma condição de provar nada, não estão no nosso sistema jurídico e legal. Isso é verdade mesmo para os não isolados.

O PL tem o objetivo inequívoco de tomar terras que são ocupadas por indígenas, mesmo as demarcadas. E o motivo da cobiça é evidente.

— O modo de vida dos indígenas permitiu a preservação desse território, por causa de como esses povos lidam com a floresta. Justamente por isso são territórios muito cobiçados e agora há o financiamento desses crimes ambientais pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas —explica Beatriz.

Convém não definir o marco temporal como o caminho de dar segurança jurídica ao país. É a maneira de manter o tempo sem lei na floresta e no Brasil.

 

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