Folha de S. Paulo
Postura militante da corte deve refluir
para ser menos interventiva
A democracia brasileira muito deve ao
Supremo e a Alexandre de Moraes. Difícil imaginar onde estaríamos se à frente
dos inquéritos que investigam atos antidemocráticos, e do próprio processo
eleitoral, tivéssemos um juiz mais contemporizador, que imaginasse poder
alimentar o crocodilo na expectativa de ser o último a ser engolido, para
parafrasear Winston Churchill.
O fato é que a democracia saiu da zona de
risco existencial. Voltou aos trilhos. As ameaças que vinham do centro do
poder, pois perpetrados pelo próprio presidente da República, comandante máximo
das Forças Armadas, não mais existem. Não se nega que grupos golpistas e
bolsonaristas ressentidos ainda estejam por aí, exalando autoritarismo. Mas os
riscos impostos por esses radicais são muito distintos daqueles impostos por um
presidente extremista.
Nesse sentido, a postura militante do
Supremo deve refluir para uma atitude menos interventiva. É fundamental que o tribunal
tome cuidado para não estabelecer precedentes que, no futuro, ameacem o próprio
debate democrático.
A democracia constitucional é um regime superior aos demais exatamente por essa sua capacidade de assegurar que visões distintas de mundo possam conviver, ainda que em forte tensão, desde que não transborde em violência. A liberdade de expressão serve exatamente para proteger discursos impróprios. Para habilitar que o conflito não fique escamoteado e reprimido, mas que ganhe a luz do dia; até para que saibamos o que pensam os nossos adversários.
Numa democracia constitucional não temos a
garantia de que não nos sentiremos desconfortáveis com o que os outros
acreditam ou como se manifestam. Há espaço para cretinos, mentirosos,
reacionários, lunáticos e mesmo autoritários. As restrições devem sempre estar
previstas em lei; e somente ser estabelecidas quando indispensáveis para
proteger grupos discriminados e vulneráveis ou para proteger o próprio regime
de liberdades democráticas de ameaças concretas.
O caso da suspensão do perfil de Monark por
opiniões expressadas recentemente aponta para uma postura desnecessariamente
restritiva da liberdade de expressão, pois não há "risco efetivo" à
democracia. Para que possa haver legítima contenção de um discurso é necessário
que o mesmo represente um "risco efetivo" à sobrevivência do Estado
democrático de Direito ou a um dos seus pilares, como a independência do
Judiciário ou a integridade do processo eleitoral, conforme estabelecido pela
ADPF 572.
Opiniões mentirosas, alucinadas e mesmo
maliciosas difundidas sobre o Supremo Tribunal Federal ou sobre o processo
eleitoral, neste momento, não colocam a democracia em risco. Portanto, devem
ser combatidas no campo da própria liberdade de expressão.
Falsários e gigolôs do ressentimento
público devem ser desmascarados, mas não calados. A liberdade de expressão não
pode depender das concepções de democracia esposadas por este ou aquele
julgador. A liberdade de expressão, é sempre bom ressaltar, serve para proteger
tanto discursos dignos como indignos, tanto discursos verdadeiros como
fantasiosos.
A democracia deve ser tolerante e paciente com
aqueles que usam a palavra para lhe agredir, a não ser quando a palavra está
sendo empregada para incitar uma prática criminosa ou impondo uma ameaça real à
vida do regime. Nestes casos deve se autodefender vigorosamente. Fora disso,
temos que conviver com discursos desprezíveis. Esse o custo inafastável de
viver em uma democracia.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
Sei.
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