O Globo
Como passamos dos gritos de “Não me
representam!” de 2013 para os gritos de “Eu autorizo!” dos golpistas de 2022?
Intuitivamente, parece que a inquietação
social despertada pelos protestos de junho de 2013 está de alguma maneira
relacionada ao populismo radical de direita que ascendeu no Brasil em 2018. Em
junho de 2013, os jovens nas ruas gritavam “Sem partido!” e “Não me
representam!”, mas sua crítica da representação e dos partidos políticos
apontava para algum tipo de democracia direta, simbolizada pelas centenas de
câmaras municipais ocupadas por jovens entre o final de junho e começo de julho
e pelas práticas assembleístas de movimentos como o Passe Livre (São Paulo),
Assembleia Popular Horizontal (Belo Horizonte) e Bloco de Lutas (Porto Alegre).
No bolsonarismo, não há sinal de horizontalismo ou democracia direta que pretenda aprofundar a democracia, mas algo que parece a rejeição da democracia liberal, com a afirmação de um líder forte, sem os embaraços das limitações constitucionais nem o contrapeso dos outros Poderes da República. Como passamos dos gritos de “Não me representam!” de 2013 para os gritos de “Eu autorizo!” dos golpistas de 2022?
Junho de 2013 faz parte de um ciclo de
levantes populares que também aconteceu noutros países entre os anos de 2011 e
2013. Eles tinham em comum a denúncia dos limites da democracia representativa
e a proposição de outra forma de fazer política, mais direta. Os gritos de “Não
me representam!” estavam também presentes em protestos noutras partes do mundo.
O lema do 15M, movimento espanhol primo de junho de 2013, dizia “Democracia
real já!”. O de outro primo, Occupy Wall Street, dizia “Nós somos os 99%”.
Todos contrapunham o teatro farsesco dos parlamentos à pulsação viva e
comunitária das ruas.
Em sua rejeição da representação política,
tida como insuficientemente democrática, os manifestantes desse ciclo
rejeitaram também as identidades políticas de esquerda e de direita. Esse,
aliás, foi um dos pontos de choque entre os organizadores, ativistas de
esquerda, e as multidões que acorreram aos protestos. O sociólogo Paolo
Gerbaudo deu a esse fenômeno o nome de “anarcopopulismo”: “anarco” porque havia
esse desejo de uma democracia direta, e “populismo” porque os manifestantes se
viam como expressão integral do povo, para além das distinções entre esquerda e
direita e para além das lideranças ativistas.
Há, assim, uma ligação subjacente entre o
anarcopopulismo dos protestos dos mais jovens de 2013 e o populismo autoritário
dos mais velhos que confluiu no bolsonarismo em 2018. Eles têm em comum uma
denúncia dos limites da democracia liberal e uma busca pela expressão direta do
povo. Mas, enquanto a resposta dos jovens era uma cidadania ativa que
aprofundaria a democracia, a resposta dos mais velhos, cinco anos depois, era
uma autoridade forte que representaria o povo diretamente, sem a mediação e as
limitações das instituições liberais.
Quando, no 1º de maio de 2021, os
bolsonaristas lançaram o slogan “Eu autorizo!”, queriam dizer que o povo dava autorização
direta a Bolsonaro para enfrentar instituições que julgavam não democráticas,
como imprensa e STF. Esse enfrentamento não era visto como antidemocrático, mas
como uma espécie de democracia populista, em que o líder é empoderado
diretamente pela multidão e enfrenta as limitações impostas por instituições
que, segundo eles, tiram a soberania do povo.
À primeira vista não parece, mas há um
impulso democratizante que anima o populismo autoritário. O cientista político
Yascha Mounk diz que a atual onda populista é uma reação à ampliação das
competências de instituições não eleitas, como tribunais constitucionais vistos
como limitadores da soberania popular. Sempre que o Supremo impõe uma limitação
ao Executivo, isso é lido pelos populistas como apropriação da soberania
popular e, portanto, como encolhimento da democracia.
Talvez seja por isso que, no meio da mais
séria crise da democracia brasileira, o apoio declarado ao regime democrático é
o mais alto da Nova República. Segundo pesquisa do Datafolha de outubro de
2022, 80% dos bolsonaristas e 78% dos não bolsonaristas apoiam a democracia.
Mas o que cada grupo entende por democracia não poderia ser mais diferente.
Excepcional análise!
ResponderExcluirMuito bom!
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