Folha de S. Paulo
Raul Araújo funda nova escola do direito
penal: a do crime ineficaz
Enquanto escrevo, o ex-candidato a
ditador Jair
Bolsonaro —pertenço ao ar livre do Estado democrático e de Direito
(faço questão do conectivo)— caminha para a inelegibilidade, em julgamento
em curso no TSE, por 3 votos a 1. É razoável supor um placar de cinco a
dois contra o biltre (sem vênias aqui). Basta um "4 a 3" para que se
cumpra a determinação constitucional, expressa no artigo 85, segundo a qual o
mandatário comete um crime quando atenta contra o livre exercício dos Poderes
da República. "Fiat lux, fiat lex". Faça-se a luz por meio do cumprimento
da lei.
"Ah, rábula Azevedo! Tal dispositivo diz respeito a crimes de responsabilidade". Este amador —que, afinal, é aquele que ama— das leis e da Constituição sabe disso ao menos. Ocorre que aprendeu com os profissionais, os bons, que o ordenamento jurídico não é um salame que se come em fatias. A interpretação sistemática da norma nos diz que "o todo sem a parte não é todo, a parte sem o todo não é parte", como escreveu um poeta baiano.
O abuso de poder político e o uso indevido
dos meios de comunicação, perpetrados pelo dito-cujo, são as transgressões
atinentes à Justiça Eleitoral. A questão de fundo é saber quais valores gerais
foram agredidos em seara específica, a saber: a reunião com embaixadores
naquele de 18 de julho do ano passado, no Palácio da Alvorada. Empregou meios
que só o mandatário poderia mobilizar, com um desiderato inequívoco: vulnerar
as regras do jogo e os juízes que certificam a sua higidez, inculcando em
seguidores e desavisados a desconfiança no sistema por meio de mentiras e
suposições infundadas.
Bolsonaro tem um bom defensor, Tarcísio
Vieira, mas não tem defesa, e o doutor sabe disso. Sua tese afronta os fatos, o
sentido das palavras e a vontade então expressa do seu cliente. Sem contestar a
prerrogativa que tem o advogado de propor uma leitura alternativa dos eventos
que levaram seu cliente ao banco dos réus, observo que a tese do pregador exige
do ouvinte o contrário do que pedia outro Vieira, o padre, em seus sermões:
teríamos de concorrer para o seu sucesso com a ignorância, não com o
entendimento.
Abstenho-me de listar aqui, porque estão em
toda parte, as mentiras contadas pelo então presidente naquela reunião e o
esforço inequívoco de obstar a eleição a um mês e meio de sua realização. Mas
Vieira, não o padre, conquistou o coração, não sei se a razão, do
ministro Raul
Araújo. Este não contestou as condutas típicas do réu. Limitou-se, ao votar
pela absolvição, a apontar a ineficácia de seus crimes, em contraste com a
eficiência da Justiça Eleitoral. Com tal tese, pode-se fundar uma escola do
direito: só os criminosos bem-sucedidos são passíveis de punição.
Assim, um golpista sempre se daria bem. Se
bem-sucedido, tomaria o poder e puniria os democratas; se malsucedido, teria
garantida a impunidade em razão de sua incompetência. Seria um pequeno passo
para a jurisprudência, mas um grande salto para a barbárie. Vou me dedicar a
outros votos de Araújo no STJ, sua corte de origem. Será a primeira vez a fazer
juízo tão singular?
E já que aqui se fala de leis e de Justiça,
comento o voto do ministro Luiz Fux, do
STF, contra o juiz
de garantias. Afirmou que os proponentes de tal avanço civilizatório
(opinião do escriba) são como os gregos, acoitados no cavalo às portas de
Troia, prontos a invadir a fortaleza do Judiciário por meio de uma trapaça.
Disse: "Diferentemente dos troianos, que foram sacrificados, nós temos o
dever de cumprir o juramento que fizemos de defender o nosso Judiciário porque
a nossa derrota significa a vitória da impunidade".
Evoca, como se lê, um "nós".
Ministros da corte, pois, que dele divergirem pertenceriam a um
"eles" —os destruidores da ordem. Fala como sindicalista de
corporação. Alexandre de Moraes, evocando a figura mais fascinante da
"Ilíada", fez um chiste: "Eu só queria fazer um elogio ao
ministro Fux pelo voto e dizer à Sua Excelência que, diferentemente do príncipe
Heitor, que não conseguiu defender Troia, o ministro Fux conseguiu defender o
Poder Judiciário". Riu discretamente. E ouviu: "Muito obrigado,
ministro Alexandre!"
Esse "troiano" não entendeu a "Ilíada", a ironia nem o juiz de garantias.
Reinaldo e sua fina ironia.
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