sexta-feira, 2 de junho de 2023

Reinaldo Azevedo - Lula entre a vontade e o melhor possível

Folha de S. Paulo

Se tudo der errado, morremos todos: o asno, o rei e eu

Entendo, lendo isso e aquilo, que o governo Lula já acabou, afundado em irresoluções. E todos os desaires derivariam de atitudes erradas do presidente. Li há pouco um troço que sugere haver traços de senilidade nas suas atitudes. Espantoso, mas não surpreendente. Discordo, sim, e torço para estar certo, não por vaidade intelectual. É que, do contrário, não vislumbro um futuro muito alvissareiro para o país. Até porque, convenham, como num poema de Jacques Prévert, "o asno, o rei e eu/ Estaremos mortos amanhã".

"Os homens fazem a sua própria história rigorosamente como querem, segundo circunstâncias que são de sua escolha. O passado é irrelevante. As tradições de todas as gerações mortas fenecem com elas e, uma vez também defuntas, libertam o cérebro dos vivos". Uma ferramenta qualquer de inteligência artificial, fazendo jus à burrice natural destes tempos, poderia reescrever assim um trecho de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", de Karl Marx. Nesta minha primeira coluna de junho, nos 10 anos daquele 2013 do florescer dos porras-loucas, mal posso conter a tentação de fazer aqui o elogio da pura vontade contra as fronteiras do real. Tempos difíceis. Faço soar o alerta de ironia?

Bem, sou, nessas coisas, um conservador. A cada dia, sua agonia, como dizem, e será sempre necessário "cultivar nosso jardim". E é fato que "tudo vai pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis". Será mesmo essa uma divisa do otimismo tolo? A resposta vem na forma de uma pergunta: o que há no impossível? Tudo o que avança além dessa linha fica no território do sonho, da utopia, dos desejos. São prefigurações legítimas, mas, ao fim da jornada, lida-se com o que há. Assim é a política. Parte considerável das circunstâncias que definem nossa existência não derivam mesmo da nossa vontade. Buscar fazer o melhor do que fizeram de nós, aí sim, parece-me um primado moral e ético.

"Tanta ‘filosofice’ por quê?" Voltemos ao início. O que em Lula é querer e o que está condicionado por circunstâncias que lhe eram e são alheias? É preciso separar os balaios. Os salamaleques ao ditador Nicolás Maduro, por exemplo, são uma escolha inaceitável, além de inútil e contraproducente. Não expressam nem sequer o respeito que ele próprio sempre manteve às regras do jogo democrático. Há uma diferença entre restabelecer relações com a Venezuela, e isso está certo, e emprestar seu prestígio a um tiranete truculento. No que respeita à guerra entre Rússia e Ucrânia, as posições do presidente divergem das de EUA e Europa (nem tanto do que anda a dizer Emmanuel Macron, é verdade), mas não das de Índia e China, que também existem. E, no fim das contas, ou se fará um acordo por lá, ou tudo irá pelo pior, no pior dos mundos possíveis. De toda sorte, Lula fez escolhas incondicionadas.

Concluídos os cinco meses de governo, tem-se praticamente aprovado um arcabouço fiscal aplaudido, a seu modo, até por Roberto Campos Neto; resgataram-se programas sociais essenciais, e a economia não foi à breca, como anteviram implacáveis bolas de cristal. O país cresceu 1,9% no primeiro trimestre, "bem acima do que se esperava" —este "se" é o índice de indeterminação do sujeito. "Vai piorar", asseguram. Quem sabe se espere errado de novo... As mães Dinahs da economia andam a nos dever acertos.

O embate para a aprovação da MP da reestruturação do governo evidenciou o que está dado faz tempo: vive-se, hoje, na prática, um regime semipresidencialista especialmente perverso porque o Congresso, em parte, governa sem ter de responder pelo resultado. O governo terá de fazer nomeações e de liberar mais emendas, o que sempre deixa arrepiados alguns dos nossos moralistas.

Observo, adicionalmente, que, passados esses cinco meses, inexiste uma oposição minimamente organizada, que tenha um eixo claro de resistência ao governo. Resume-se a produzir delinquências em depoimentos de ministros e nas comissões de inquérito do golpe e do MST, ainda germinações do espírito fascistoide que foi derrotado nas urnas. Não me engano: o risco que essa gente representa, embalada pelo esgoto das redes sociais, ainda não passou —hipótese em que morreremos todos: o asno, o rei e eu.

 

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