Folha de S. Paulo
Se tudo der errado, morremos todos: o asno,
o rei e eu
Entendo, lendo isso e aquilo, que o
governo Lula já
acabou, afundado em irresoluções. E todos os desaires derivariam de atitudes
erradas do presidente. Li há pouco um troço que sugere haver traços de
senilidade nas suas atitudes. Espantoso, mas não surpreendente. Discordo, sim,
e torço para estar certo, não por vaidade intelectual. É que, do contrário, não
vislumbro um futuro muito alvissareiro para o país. Até porque, convenham, como
num poema de Jacques Prévert, "o asno, o rei e eu/ Estaremos mortos
amanhã".
"Os homens fazem a sua própria história rigorosamente como querem, segundo circunstâncias que são de sua escolha. O passado é irrelevante. As tradições de todas as gerações mortas fenecem com elas e, uma vez também defuntas, libertam o cérebro dos vivos". Uma ferramenta qualquer de inteligência artificial, fazendo jus à burrice natural destes tempos, poderia reescrever assim um trecho de "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", de Karl Marx. Nesta minha primeira coluna de junho, nos 10 anos daquele 2013 do florescer dos porras-loucas, mal posso conter a tentação de fazer aqui o elogio da pura vontade contra as fronteiras do real. Tempos difíceis. Faço soar o alerta de ironia?
Bem, sou, nessas coisas, um conservador. A
cada dia, sua agonia, como dizem, e será sempre necessário "cultivar nosso
jardim". E é fato que "tudo vai pelo melhor, no melhor dos mundos
possíveis". Será mesmo essa uma divisa do otimismo tolo? A resposta vem na
forma de uma pergunta: o que há no impossível? Tudo o que avança além dessa
linha fica no território do sonho, da utopia, dos desejos. São prefigurações
legítimas, mas, ao fim da jornada, lida-se com o que há. Assim é a política.
Parte considerável das circunstâncias que definem nossa existência não derivam
mesmo da nossa vontade. Buscar fazer o melhor do que fizeram de nós, aí sim,
parece-me um primado moral e ético.
"Tanta ‘filosofice’ por quê?"
Voltemos ao início. O que em Lula é querer e o que está condicionado por
circunstâncias que lhe eram e são alheias? É preciso separar os balaios. Os
salamaleques ao ditador Nicolás
Maduro, por exemplo, são uma escolha inaceitável, além de inútil e
contraproducente. Não expressam nem sequer o respeito que ele próprio sempre
manteve às regras do jogo democrático. Há uma diferença entre restabelecer
relações com a Venezuela, e isso está certo, e emprestar seu prestígio a um
tiranete truculento. No que respeita à guerra entre Rússia e Ucrânia, as
posições do presidente divergem das de EUA e Europa (nem tanto do que anda a
dizer Emmanuel Macron, é verdade), mas não das de Índia e China, que também
existem. E, no fim das contas, ou se fará um acordo por lá, ou tudo irá pelo
pior, no pior dos mundos possíveis. De toda sorte, Lula fez escolhas
incondicionadas.
Concluídos os cinco meses de governo,
tem-se praticamente aprovado um arcabouço fiscal aplaudido, a seu modo, até por
Roberto Campos Neto; resgataram-se programas sociais essenciais, e a economia
não foi à breca, como anteviram implacáveis bolas de cristal. O país cresceu
1,9% no primeiro trimestre, "bem acima do que se esperava" —este
"se" é o índice de indeterminação do sujeito. "Vai piorar",
asseguram. Quem sabe se espere errado de novo... As mães Dinahs da economia
andam a nos dever acertos.
O embate para a aprovação
da MP da reestruturação do governo evidenciou o que está dado faz
tempo: vive-se, hoje, na prática, um regime semipresidencialista especialmente
perverso porque o Congresso,
em parte, governa sem ter de responder pelo resultado. O governo terá de fazer
nomeações e de liberar mais emendas, o que sempre deixa arrepiados alguns dos
nossos moralistas.
Observo, adicionalmente, que, passados
esses cinco meses, inexiste uma oposição minimamente organizada, que tenha um
eixo claro de resistência ao governo. Resume-se a produzir delinquências em
depoimentos de ministros e nas comissões
de inquérito do golpe e do MST, ainda
germinações do espírito fascistoide que foi derrotado nas urnas. Não me engano:
o risco que essa gente representa, embalada pelo esgoto das redes sociais,
ainda não passou —hipótese em que morreremos todos: o asno, o rei e eu.
Pois bem...
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