O Estado de S. Paulo
Como o País deve atuar num cenário de rivalidade estratégica cada vez mais acirrada (e potencialmente beligerante) entre China e EUA?
Pela importância do tema e posição
institucional do entrevistado, mereceu menos atenção do que deveria uma
entrevista publicada no jornal Zero Hora em 1/6/2023. Nela, Elias Khalil
Jabour, indicado por Dilma Rousseff para uma das diretorias do banco dos Brics,
expõe sua visão sobre qual deva ser a estratégia do Brasil diante da crescente
rivalidade entre os Estados Unidos e a China: “O futuro do Brasil está ao lado
da China”, diz ele em frase síntese que dá título à entrevista.
Seria exagero afirmar que o professor da
Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj) tem grande influência sobre a definição da política externa brasileira.
Ainda assim, suas palavras merecem atenção porque expressam, de modo
sistemático, um pensamento difuso que predomina nos partidos de esquerda em
geral e no PT, em particular. E, nessa medida, afetam a política externa e a
percepção sobre ela.
Começo pelas concordâncias. Em grandes linhas, está correto o diagnóstico de que há um rebalanceamento acelerado do poder mundial, que nos últimos 500 anos se concentrou no Ocidente e desde a 2.ª Guerra Mundial, em especial depois do colapso da União Soviética, nos Estados Unidos. A questão é como um país como o Brasil deve atuar num cenário de rivalidade estratégica cada vez mais acirrada (e potencialmente beligerante) entre a potência ascendente, a China, e a que esteve até aqui sozinha no topo, os Estados Unidos. O desafio requer realismo, razoável nível de consenso interno sobre o que queremos e boa capacidade de coordenação entre os diversos agentes da política externa. As preferências ideológicas não podem ser a nossa estrela-guia.
Embora se apresente como cientista, Jabour
faz apologia do socialismo com características chinesas. Canta em verso e prosa
a “maior transformação social da história da humanidade” e, num arroubo, afirma
que o modelo híbrido chinês representa “o grau máximo que a inteligência humana
pode alcançar hoje”. Faltou pouco para decretar o “fim da História”, como
precipitadamente o fez Francis Fukuyama, em livro publicado em 1992, logo após
a dissolução da União Soviética. Fukuyama, um grande intelectual, quebrou a
cara. Jabour deveria ser mais cauteloso.
No embalo apologético, o historiador omite
os desastres econômicos e humanitários provocados pelo delírio ideológico e
coercitivo de Mao Tsé-tung, entre as décadas de 50 e 70 do século passado. “O
Grande Salto à Frente” e “A Revolução Cultural” não foram invenções
hollywoodianas. Provocaram fome, prisões, linchamentos e fuzilamentos em massa.
Jabour se esquece de dizer que as reformas econômicas de Deng Xiaoping, que
avançaram entre os anos 80 e a primeira década deste século, não são um
desdobramento do maoismo, mas uma resposta ao legado ruinoso que ele deixou na
sociedade e na economia chinesas. Como se fosse pouco, não se acanha de afirmar
que não há nem ditadura nem presos políticos na China, fatos notórios,
sobretudo depois que Xi Jinping assumiu o poder. A sua liderança marca um
retorno político ao totalitarismo da era Mao e um retrocesso econômico em
relação às reformas de Deng Xiaoping.
A alma de torcedor aparece também, embora
com maior rigor analítico, na avaliação sobre a projeção externa da China. Para
Jabour, ela teria um interesse intrínseco no fortalecimento da economia
brasileira, não apenas como fornecedora de commodities agrícolas e minerais,
porque o Brasil seria – ao lado de Taiwan e Ucrânia – um país-chave na disputa
entre os Estados Unidos, líder do Ocidente, e a China, líder da Eurásia, pela
hegemonia global. Trata-se de uma proposição audaciosa. Em primeiro lugar,
porque pressupõe – como um dado inquestionável – que a China está interessada
(e os Estados Unidos e Europa, não) em que o Brasil fortaleça a sua indústria
sob novas bases. Em segundo, porque eleva o País à condição de arena
estratégica da competição, um exagero evidente. Por fim, porque apresenta o
mundo em lentes binárias: de um lado, a China, coadjuvada pela Rússia, formando
um bloco, a Eurásia, contra o bloco Ocidental.
O mapa mental do professor é mais rígido e
esquemático que a realidade. A história dos investimentos diretos da China no
exterior não autoriza a afirmação taxativa de que obedecem a um padrão
favorável ao desenvolvimento sustentado dos países de destino. Nem a Eurásia
conforma um bloco homogêneo nem o Ocidente se resume aos Estados Unidos e à
Europa. Seriam Japão, Índia, Indonésia, Vietnã parte da Eurásia? Não seria a
América Latina parte do Ocidente?
Ninguém analisa as relações internacionais
com 100% de neutralidade. Também eu tenho as minhas preferências. Não hesito em
afirmar que prefiro as imperfeições das democracias liberais à suposta
eficiência máxima do “socialismo com características chinesas”. O problema é
permitir que essas inclinações se cristalizem em esquemas intelectuais
fechados. Pior ainda quando utilizados como bússola para navegação num mundo
que não comporta respostas binárias para os desafios que apresenta.
*DIRETOR-GERAL DA FUNDAÇÃO FHC, É MEMBRO DO
GACINT-USP
Estupenda reflexão!
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