O Globo
Sem um programa claro do governo e um canal
permanente para entender as demandas da sociedade, cada votação custará bilhões
As dificuldades enfrentadas por Lula no
início de sua gestão decorrem menos dessa ou daquela peça que não esteja
funcionando na engrenagem do governo e mais da cisão na sociedade, que
permanece passados quase seis meses da posse.
Não será uma mexida ministerial para
contentar esse ou aquele grupo de deputados que fará o presidente se aproximar
do eleitorado evangélico, como se constata depois da vaia destinada a ele na
Marcha para Jesus, nesta quinta-feira.
A reforma tem de ser mais profunda e passar pela compreensão das forças que regem a sociedade e de formas de dialogar com elas, sem necessariamente trair compromissos históricos e aqueles professados na campanha. Pelo contrário: talvez a definição clara de princípios e prioridades para este mandato trate de amalgamar um apoio para além da vazia e cada vez mais instrumentalizada divisão do Brasil grosseiramente em “esquerda” e “direita”.
Quando Lula e o PT estavam mais à esquerda
do que hoje e não tinham governado o país ainda, conseguiram atrair
evangélicos, empresários, a maioria do agronegócio, industriais e segmentos do
mercado financeiro. Por que não agora? Porque houve o impeachment, Jair
Bolsonaro, a polarização foi alimentada pelos dois lados, e hoje todos os
setores parecem estar viciados em analisar todo e qualquer problema complexo
sob lentes redutoras meramente ideológicas.
O que Alexandre de Moraes fez em seu voto
sobre o marco temporal foi tirar o assunto desse ringue emburrecedor e trazê-lo
para o campo do Direito, combinado com o bom senso. Disse o óbvio: a
Constituição não estabeleceu marco temporal algum ao reconhecer o direito dos
indígenas ao seu território. Porém esse direito tem de ser cotejado com
demandas muitas vezes legítimas, seja de fazendeiros estabelecidos, seja para
os casos em que municípios estão consolidados, e simplesmente desalojá-los não
é uma possibilidade factível.
É para isso que governos, parlamentares e
juízes existem: para compatibilizar o que dizem as leis e as demandas concretas
dos indivíduos e dos grupos sociais. Esse deveria ser o olhar a guiar Lula e o
PT para uma reaproximação não oportunista com os evangélicos. Não apenas por
uma necessidade eleitoral, que existe, mas porque, para governar um país
complexo como o Brasil, é necessário ter o que propor a um contingente de mais
de 30% da população, sem preconceitos ou sem cometer o erro de achar que todo
evangélico é bolsonarista ou de extrema direita.
Qual pode ser o antídoto para o antilulismo
que Bolsonaro foi bem-sucedido em inocular entre os neopentecostais? Uma agenda
social sólida, que congregue transferência de renda, educação, oportunidade de
trabalho e respeito a uma compreensão de mundo diferente daquela mais difundida
entre o público mais progressista, que historicamente vota no petista.
Foi um erro não contemplar, entre mais de
cem cadeiras no Conselhão, um órgão consultivo, ao menos uma liderança
evangélica — um representante católico, o padre Júlio Lancellotti, está
merecidamente entre os conselheiros. Da mesma maneira, depois do que se viu na
campanha eleitoral, é inexplicável que o governo e os partidos de esquerda não
tenham previsto que a extrema direita usaria a discussão do PL das fake news
para mais uma safra de mentiras para indispor Lula e a esquerda com o público
evangélico.
É muita dissociação do que acontece para
além da bolha lulopetista. Se essa miopia prosseguir, não será trocando Daniela
do Waguinho por Celso do Lira que a tal governabilidade virá. Sem que haja um
programa claro do governo e um canal permanente para entender as demandas da
sociedade — mesmo quando elas forem antagônicas à agenda do PT e de Lula —,
cada votação custará bilhões, e todo pretexto será válido para pedir a cabeça
de ministros. Não há paz para governar nessas bases.
Verdade.
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