Folha de S. Paulo
Prisões de mandantes, se vierem, poderão
aplacar o irremediável das perdas
Este governo demorou meio ano para ferver o
que o antecessor congelou por quatro. A semana de avanços
na investigação dos assassinatos de Marielle
Franco e Anderson Gomes foi a do aniversário dos 44 anos que a
vereadora não pôde comemorar.
Em vez de festa, houve luto. A volta
à tona do caso que nunca afundou no esquecimento reavivou o drama para
pais, filha, irmã, viúva, amigos de uma das vítimas. E certamente afetou a
família da outra, embora pouco se saiba disso —a imprensa raramente cobre os
enlutados com a morte do motorista.
As prisões de mandantes, se vierem, poderão
aplacar, nunca suprimir, o irremediável de ambas as perdas.
O espantoso no desvelamento não foram as
lágrimas dos enlutados, mas a frieza dos perpetradores.
O depoimento de Élcio de Queiroz faz lembrar "A Sangue Frio", de Truman Capote. No romance-reportagem, sobre crime no interior do Kansas nos anos 1960, o ato de assassinar não perturba os assassinos. Queiroz expressou a mesma insensibilidade.
Suas 2 horas e 36 minutos de depoimento
deram 72 páginas novelescas. Narrou sem culpa, pena ou arrependimento a
sequência de pequenas decisões que encerraram duas vidas.
Sua única nota emotiva foi sobre si mesmo,
ao lembrar os cartuchos
vazios chovendo sobre a própria cabeça e o frenesi da rajada
espoucando nos ouvidos.
O depoente detalhou com precisão as
peculiaridades da arma e seu possível destino romanesco: "Ele (Ronnie)
serrou ela todinha, pegou a embarcação lá na Barra da Tijuca, foi numa parte
mais funda (...) que tinha 30 metros e jogou ali".
Élcio duvidou da veracidade do dito porque
Ronnie "tinha muito carinho por essa arma".
Além deste amor entre o atirador e sua MP5,
o afeto é amálgama entre muitos dos mencionados. São parentes, vizinhos,
amigos, como o delator e o atirador, conhecidos há 30 anos, desde quando um era
PM e fez do outro, então na Polícia Civil, padrinho do filho —"a nossa
relação é nesse sentido, de família".
O depoimento desenha um modo de vida no
qual relações afetivas, oportunidades financeiras e uso da violência se
entrelaçam. As armas são objeto de fetiche, o assassinato é só mais um trabalho
e a morte é uma rotina.
Neste meio viceja todo tipo de negócio
suspeito, como o de um de seus companheiros que "faliu um cassino no
Paraguai, estourou o dinheiro do sogro".
O enredo do assassinato político desvela
pedaço largo e cinzento da sociedade brasileira, povoado por personagens de
apelidos que evocam a ficção: Gato do Mato, Hulkinho, Piroca, Bolota, Orelha.
Nesse mangue, o bolsonarismo tem raízes bem fincadas.
Uma gente que clama por liberação do porte
de armas, redução da maioridade penal e pena de morte. Uma pauta que ainda não
lograram implementar, mas da qual não desistem, obcecados por reproduzir a
parte caubói dos Estados Unidos que tanto admiram.
Nela, os protagonistas do livro de Capote
foram para a forca. Os assassinos de Marielle e Anderson não irão. Para sorte
de Ronnie e Élcio, aqui não é o Kansas e a Justiça não segue a lei de talião.
Depois de sete anos pulando entre cadernos,
deixo este espaço para passar um semestre na Universidade Harvard. Muito
obrigada à Folha, em
especial às equipes das editorias que me acolheram. Sou grata sobretudo a quem
teve a paciência de me ler. Até outra hora.
*Professora de sociologia da USP e
pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
Boa sorte e até.
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