O Estado de S. Paulo
Temos de pensar, no Brasil, em iniciativas
de larga escala, que redundem em avanços palpáveis num curto lapso de tempo
Se o prezado leitor acredita que a
abundância de recursos naturais será suficiente para levar o Brasil ao paraíso
do bem-estar, parabéns, é um otimista.
Otimismo não paga imposto; não se preocupe em poupálo. Mas lembrem-se de que já experimentamos vários modelos e nos especializamos em dar com os burros n’água. Atualmente, estamos afundados no que os economistas chamam de “armadilha do baixo crescimento”. Uma exceção aos nossos sucessivos fracassos é a exportação de commodities para a China, mas, atenção, commodities não criam empregos. Os fios de esperança que mantêm vivos os nossos quase 10 milhões de desempregados são a indústria e o setor de serviços. A indústria, que outrora atingia 27% do Produto Interno Bruto (PIB), hoje não passa de 11%. E os serviços (falo de restaurantes, hotelaria, atividades ligadas ao turismo) que mantenham ligadas as suas antenas, porque a fúria arrecadatória do governo não vai parar tão cedo. O governo precisa dela para prover os auxílios-emergência sem os quais nosso quadro social ficaria deveras macabro.
Nunca é demais lembrar que já estamos no
século 21. Foi apenas um século atrás que implantamos nossa primeira
universidade. Em 1934 até que tentamos um passo mais arrojado, a criação da
Universidade de São Paulo, com um corpo docente recrutado entre o que de melhor
havia na Europa. Nas ciências exatas, podemos dizer que valeu a pena. Mas as
ciências humanas rapidamente sucumbiram à era da ideologia. O resultado dessa
triste combinação é que só agora, em 2023, uma universidade brasileira aparece
na lista das cem melhores do mundo.
Salta, pois, aos olhos que precisamos
explorar outras linhas de raciocínio. Temos de pensar em iniciativas de larga
escala, que redundem em avanços palpáveis num curto lapso de tempo. O melhor
exemplo é bem conhecido. Vem da educação. Nos Estados Unidos, em 1862 – segundo
ano da guerra civil, reparem bem –, o presidente Abraham Lincoln encontrou
tempo para pensar em algo melhor que revólveres e carabinas. Sancionou o
projeto de lei que deu origem aos landgrant colleges: a concessão de terras
pertencentes à União aos Estados com a condição de que estes as utilizassem
para a implantação de escolas dedicadas às “mechanical arts ”, ou seja, ao
desenvolvimento de tecnologias. O êxito de tal programa foi absolutamente
espetacular, a ponto de tais colleges se tornarem um dos propulsores da
acelerada industrialização das três décadas seguintes.
No Brasil, graças aos céus, a consciência
de que precisamos de ciência e tecnologia vem aumentando, mas, se querem
avaliar o tamanho do nosso atraso, vejam lá em cima minha referência ao
Mississippi. Deus talvez seja mesmo brasileiro, mas às vezes se distrai. Nos
Estados Unidos, um dos principais estímulos à criação dos land-grant colleges
foram as nevascas que todo ano arrasavam uma parcela importante da agricultura.
Deus não nos deu a neve, privando-nos, portanto, de indispensáveis impulsos na
geração de técnicas e de hábitos de colaboração entre vizinhos e coletividades.
A parte que nos coube no latifúndio universal foram o clima tropical e a
cultura ibérica, em sua maior parte assentada sobre a contrarreforma deflagrada
por Santo Inácio de Loyola, inimiga figadal da ciência moderna. Seu cerne, além
da religião, a pregação, a oratória, uma arraigada aversão à experiência
factual como base para o progresso do conhecimento.
O fruto mais elaborado dessa trilha foi,
como sabemos, as escolas de Direito. Essencial em doses moderadas, o Direito
difunde e alastra a opacidade sobre as sociedades que a ele sucumbem sem nenhum
sentido crítico. Hoje, no Brasil, temos algo em torno de 2 mil escolas de
Direito. De agora em diante, os bacharéis egressos de escolas privadas
consumirão o resto de sua vida tentando pagar o que despenderam em sua
formação. Esse é um fenômeno já perceptível mesmo nos Estados Unidos.
Para não concluir numa nota triste, peço
vênia para evocar um caso que por certo soará inusitado neste espaço: a difusão
do violão clássico pelo mundo. Ela se deveu ao hercúleo exemplo de um pequeno
grupo, liderado pelo espanhol Andrés Segovia (um aristocrático que se recusou a
reconhecer o mérito do paraguaio Agustín Barrios, tão bom quanto ele na técnica
e muito superior na composição). Segovia anunciou como seu propósito nada menos
que restaurar o violão à condição de instrumento de concerto, digno de ser
apresentado em recitais e junto com as melhores orquestras. No Brasil, cento e
poucos anos atrás, violão era instrumento de homem, negro, malandro e por aí
afora. Villa-Lobos foi outro que contribuiu poderosamente para o projeto de
Segovia. Para isso, era mister cultivar, sem concessões, a melhor técnica. Nos
anos 50 do século passado, no Brasil, haveria talvez quatro ou cinco
violonistas de padrão internacional. Hoje há dezenas, e o mesmo ocorre em todo
o mundo, com a possível exceção da Coreia do Norte. Curiosamente, tal
desenvolvimento foi marcante na Ásia e, salvo engano, mais entre as mulheres
que entre os homens.
*SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É
MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
Muito bom.
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