sábado, 1 de julho de 2023

Bolívar Lamounier* - O valor da ambição prática

O Estado de S. Paulo

Temos de pensar, no Brasil, em iniciativas de larga escala, que redundem em avanços palpáveis num curto lapso de tempo

Se o prezado leitor acredita que a abundância de recursos naturais será suficiente para levar o Brasil ao paraíso do bem-estar, parabéns, é um otimista.

Otimismo não paga imposto; não se preocupe em poupálo. Mas lembrem-se de que já experimentamos vários modelos e nos especializamos em dar com os burros n’água. Atualmente, estamos afundados no que os economistas chamam de “armadilha do baixo crescimento”. Uma exceção aos nossos sucessivos fracassos é a exportação de commodities para a China, mas, atenção, commodities não criam empregos. Os fios de esperança que mantêm vivos os nossos quase 10 milhões de desempregados são a indústria e o setor de serviços. A indústria, que outrora atingia 27% do Produto Interno Bruto (PIB), hoje não passa de 11%. E os serviços (falo de restaurantes, hotelaria, atividades ligadas ao turismo) que mantenham ligadas as suas antenas, porque a fúria arrecadatória do governo não vai parar tão cedo. O governo precisa dela para prover os auxílios-emergência sem os quais nosso quadro social ficaria deveras macabro.

Nunca é demais lembrar que já estamos no século 21. Foi apenas um século atrás que implantamos nossa primeira universidade. Em 1934 até que tentamos um passo mais arrojado, a criação da Universidade de São Paulo, com um corpo docente recrutado entre o que de melhor havia na Europa. Nas ciências exatas, podemos dizer que valeu a pena. Mas as ciências humanas rapidamente sucumbiram à era da ideologia. O resultado dessa triste combinação é que só agora, em 2023, uma universidade brasileira aparece na lista das cem melhores do mundo.

Salta, pois, aos olhos que precisamos explorar outras linhas de raciocínio. Temos de pensar em iniciativas de larga escala, que redundem em avanços palpáveis num curto lapso de tempo. O melhor exemplo é bem conhecido. Vem da educação. Nos Estados Unidos, em 1862 – segundo ano da guerra civil, reparem bem –, o presidente Abraham Lincoln encontrou tempo para pensar em algo melhor que revólveres e carabinas. Sancionou o projeto de lei que deu origem aos landgrant colleges: a concessão de terras pertencentes à União aos Estados com a condição de que estes as utilizassem para a implantação de escolas dedicadas às “mechanical arts ”, ou seja, ao desenvolvimento de tecnologias. O êxito de tal programa foi absolutamente espetacular, a ponto de tais colleges se tornarem um dos propulsores da acelerada industrialização das três décadas seguintes.

No Brasil, graças aos céus, a consciência de que precisamos de ciência e tecnologia vem aumentando, mas, se querem avaliar o tamanho do nosso atraso, vejam lá em cima minha referência ao Mississippi. Deus talvez seja mesmo brasileiro, mas às vezes se distrai. Nos Estados Unidos, um dos principais estímulos à criação dos land-grant colleges foram as nevascas que todo ano arrasavam uma parcela importante da agricultura. Deus não nos deu a neve, privando-nos, portanto, de indispensáveis impulsos na geração de técnicas e de hábitos de colaboração entre vizinhos e coletividades. A parte que nos coube no latifúndio universal foram o clima tropical e a cultura ibérica, em sua maior parte assentada sobre a contrarreforma deflagrada por Santo Inácio de Loyola, inimiga figadal da ciência moderna. Seu cerne, além da religião, a pregação, a oratória, uma arraigada aversão à experiência factual como base para o progresso do conhecimento.

O fruto mais elaborado dessa trilha foi, como sabemos, as escolas de Direito. Essencial em doses moderadas, o Direito difunde e alastra a opacidade sobre as sociedades que a ele sucumbem sem nenhum sentido crítico. Hoje, no Brasil, temos algo em torno de 2 mil escolas de Direito. De agora em diante, os bacharéis egressos de escolas privadas consumirão o resto de sua vida tentando pagar o que despenderam em sua formação. Esse é um fenômeno já perceptível mesmo nos Estados Unidos.

Para não concluir numa nota triste, peço vênia para evocar um caso que por certo soará inusitado neste espaço: a difusão do violão clássico pelo mundo. Ela se deveu ao hercúleo exemplo de um pequeno grupo, liderado pelo espanhol Andrés Segovia (um aristocrático que se recusou a reconhecer o mérito do paraguaio Agustín Barrios, tão bom quanto ele na técnica e muito superior na composição). Segovia anunciou como seu propósito nada menos que restaurar o violão à condição de instrumento de concerto, digno de ser apresentado em recitais e junto com as melhores orquestras. No Brasil, cento e poucos anos atrás, violão era instrumento de homem, negro, malandro e por aí afora. Villa-Lobos foi outro que contribuiu poderosamente para o projeto de Segovia. Para isso, era mister cultivar, sem concessões, a melhor técnica. Nos anos 50 do século passado, no Brasil, haveria talvez quatro ou cinco violonistas de padrão internacional. Hoje há dezenas, e o mesmo ocorre em todo o mundo, com a possível exceção da Coreia do Norte. Curiosamente, tal desenvolvimento foi marcante na Ásia e, salvo engano, mais entre as mulheres que entre os homens.

*SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

 

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