O Globo
Bolsonaro exerceu o poder presidencial em
revolta permanente contra o cargo para o qual foi eleito
Quando uma democracia constitucional tem à
frente um presidente que nutre desprezo pelo não semelhante, age como se leis
fossem para otários e normas políticas existissem apenas para perdedores, as
instituições precisam ser avivadas para não descarreirar. Em outubro de 2022, o
eleitor brasileiro fez sua parte, derrotando o candidato à reeleição, Jair
Bolsonaro. Foram 60,3 milhões de votos soberanos, legais e legítimos
para Lula,
contra 58,2 milhões também soberanos, legais e legítimos para o “mito”. A cada
um seu cada qual.
Na semana passada, foi a vez de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lidar com o que lhe competia, e assim fez. Pela primeira vez na História do país, um ex-presidente da República tornou-se impedido de disputar cargo público, por oito anos. Como as sessões da votação do colegiado foram transmitidas ao vivo, o Brasil teve direito a um grande momento educativo em sua formação democrática. Cinco votos a dois condenaram o acusado à inelegibilidade por oito anos, por abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação — em 18 de julho de 2022, na condição de chefe da nação, Bolsonaro convocara embaixadores estrangeiros ao Palácio da Alvorada para atacar o sistema eleitoral do país sob seu governo. Por ora, está de bom tamanho, considerando que há 15 outras acusações de cunho eleitoral contra o ex-mandatário, sem contar os processos criminais à sua frente.
O anúncio do TSE fez ressurgir em Bolsonaro
a índole trevosa, irritadiça, impaciente e desbocada que o Brasil de 2023
tentava esquecer. Até mesmo sua cabeleira entra em desarranjo quando está em
combustão. De imediato, já na própria sexta-feira, voltou a duvidar da lisura
do voto eletrônico e retomou a retórica da mitomania (“não estou morto”, “levei
uma facada nas costas”). Nada de novo. Qualquer consulta aos quatro anos de
pronunciamentos do ex-presidente, mesmo que aleatória, resulta em alguma
aberração. Em fala na abertura do 5º Fórum de Investimentos Brasil, ele disse
que não levava jeito para ser presidente, que nascera para ser militar. Mas
fazer o quê?
— Eu acredito, por favor, podem discordar,
que Deus botou a mão sobre o Brasil. Nos deu a chance de abrir os olhos e falar
o que queremos. De todo mundo se conscientizar que temos que jogar dentro das
quatro linhas da Constituição. E quem estiver jogando fora, e tem, naquela
Praça dos Três Poderes, tem que vir para dentro das quatro linhas. O normal era
um chefe do Executivo conspirar para permanecer no poder e não o contrário —
disse para a plateia de empresários.
Ninguém perguntou o que ele queria dizer
com “o normal era um chefe do Executivo conspirar para permanecer no poder”.
Os seguidores daquela “nação-mito”
derrotada nas urnas se compraziam com o desdém do líder pelas normas
democráticas. Tal como seu ídolo Donald Trump nos Estados Unidos, Jair
Bolsonaro exerceu o poder presidencial como se estivesse em revolta permanente
contra o cargo para o qual foi eleito. Sob o lema “Deus, pátria, família e
liberdade”, não podia ter amarras nem constrangimentos. Diante do tecido cívico
por ele esgarçado, jamais cogitou fazer o trabalho miúdo e exaustivo de
fornecer agulha e linha aos vários atores da sociedade. Seria inglório.
Graças à decisão histórica desta semana, o
Brasil representado no voto majoritário do TSE dá ao ex-mandatário oito anos
para se adequar às normas democráticas conquistadas. Elas conseguiram
sobreviver a quatro anos de anarquia presidencial, ao negacionismo de Estado no
combate à Covid-19 e à cooptação para o ilícito de mais de um punhado de
militares aventureiros. Oito anos parece ser o tempo mínimo para a nação
conseguir sair de seu desassossego cívico. Nada, porém, sugere que seja tempo suficiente
para alterar a índole destrutiva e incivilizatória do “mito” de 68 anos.
Respiremos fundo. Sempre é hora de ler ou
reler “Mario e o mágico”, conto que Thomas Mann escreveu em 1929 sobre um
ilusionista fascistoide que hipnotiza espectadores do povo e os submete a
papéis humilhantes.
Muito bom o artigo.
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