O Estado de S. Paulo
Maduro, com medo de perder o poder, acabou
confirmando para o mundo algo de que se dúvida apenas no Brasil: a Venezuela
não é uma democracia
Ainda que por caminhos tortuosos, foi bom a
Venezuela voltar a ser debatida no Brasil. Afinal, somos vizinhos, temos uma
fronteira de 2.199 km, os yanomamis vivem nos dois países, compartilhamos o
Monte Roraima, uma atração internacional, e 280 mil pessoas pedem refúgio no
Brasil, a maioria delas venezuelana. Isso sem falar na dimensão econômica, a
energia da Usina Hidrelétrica de Guri, que abasteceu Roraima até 2019, o
comércio intenso entre os dois países, o contrabando de gasolina na fronteira.
No passado, quando visitei Caracas, até a água mineral nos restaurantes vinha do Brasil. Eram tempos melhores. Mais tarde, vi dezenas de caminhões em Pacaraima, na fronteira, parados porque os venezuelanos não estavam mais pagando suas compras. Há ainda em aberto uma dívida pública com o Brasil.
Visitei inúmeras vezes a região da
fronteira, para entrevistar refugiados que fugiam das terríveis condições
econômicas. O relato que traziam era principalmente de dificuldades materiais –
em alguns casos, de fome.
Para acompanhar a vida política na
Venezuela, minha referência é o Tal Cual, um jornal fundado por Teodor
Petkfoff, um ex-militante da esquerda que se tornou um importante nome na
política do país. O jornal sofreu de tudo para manter sua independência:
processos, multas, o próprio Petkoff, aos 82 anos, foi processado e alguns
diretores tiveram seus passaportes apreendidos. Dentro dos limites, entretanto,
Tal Cual nunca deixou de revelar as mazelas do regime chavista.
Mais tarde, a visita de Michelle Bachelet,
alta comissária de direitos humanos da ONU, confirmou, parcialmente, o que se
falava também no discurso oposicionista: milhares de execuções sumárias de
resistentes políticos e delinquentes comuns.
Bachelet não criou uma narrativa sobre a
Venezuela. Percorreu 12 Estados e fez um relatório isento. Sua posição moderada
a levou a condenar as represálias econômicas à Venezuela, principalmente nos
tempos difíceis da pandemia.
A moderação de Bachelet se mostrou em outro
momento, quando elogiou o acordo entre a Venezuela e o Tribunal Penal
Internacional. Ia ser aberto um processo contra as autoridades venezuelanas,
mas o regime de Maduro se dispôs a levar adiante, por conta própria, as
investigações. O tribunal decidiu, então, esperar o desfecho delas.
Na semana passada, o Tribunal
Penal Internacional decidiu reabrir o
processo contra a Venezuela, simplesmente porque Maduro não cumpriu o acordo.
Poucos dias depois dessa demonstração
irrefutável da incapacidade democrática de Maduro, o governo lança outra medida
ditatorial: retira da campanha eleitoral a forte candidata oposicionista à
presidência, María Corina Machado. A decisão a afasta da disputa por 15 anos.
Maduro caminha para uma eleição retirando
os opositores do caminho. Somando isso às denúncias feitas pela ONU e, agora,
objeto de um sério processo no Tribunal Penal Internacional, não é possível
dizer que a Venezuela é uma democracia só porque realiza eleições.
Em primeiro lugar, eleições não são o único
critério, e para serem avaliadas é preciso que haja igualdade na disputa, algo
que não existe com os principais opositores retirados à força do páreo. Um
segundo argumento é o exame de outras variáveis: autonomia dos Poderes, devido
processo legal, ampla liberdade de imprensa e reunião.
A saga de Teodor Petkoff e do Tal Cual, assim
como o próprio comportamento de Bachelet, mostram que condenar o regime de
Maduro não é uma posição conservadora. É uma posição que não estimula as
restrições econômicas ao país, muito menos reconhece autoproclamados
presidentes, como Juan Guaidó.
Ao que tudo indica, a abertura para
refugiados venezuelanos continua a existir, apesar da mudança de governo no
Brasil. No entanto, nem a clara hostilidade de Bolsonaro nem o paternalismo
cúmplice de Lula parecem ser a política adequada no sentido de estimular a real
democracia na Venezuela, sem necessariamente sabotar sua situação econômica,
arruinada pela incompetência e pela corrupção chavistas e agravada pelas
restrições internacionais.
Uma posição correta é essencial para
definir o futuro das relações Brasil-Venezuela. O povo vizinho precisa saber
que somos solidários a ele, e não a dirigentes que o oprimem, e que não estamos
inventando alternativas artificiais. Apenas o apoiamos no seu sofrimento e na
esperança de dias melhores.
Não há como escapar do tema, como o Brasil
tentou na recente reunião do Mercosul. Uruguai e Paraguai o mencionaram e a
própria União Europeia também lançou uma nota quando se proibiu a candidatura
de María Corina Machado.
A medida da visão democrática num governo
se expressa também na maneira como se relaciona com ditaduras no continente. As
eleições no Brasil parecem ter consagrado uma frente democrática. No entanto, o
que prevalece em relação à Venezuela é uma visão partidária, estreita demais
para este momento da História.
Pouco adianta monitorar eleições em que os
candidatos de oposição foram previamente retirados do páreo. Maduro, com medo
de perder o poder, acabou confirmando para o mundo algo de que se duvida apenas
no Brasil: a Venezuela não é uma democracia.
Então!
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