O Globo
As pessoas que menos devastaram o planeta
são as que mais sofrem, sobretudo vendo desaparecer a água, seu recurso vital
Escrevo no Xingu, algo que, de certa forma,
me parece o coração do Brasil. Um coração com algumas pontes de safena, sangue
escasso e contaminado de um belo rio que corre pelas suas artérias. Como o
grande coração do cacique Raoni, regido por um marca-passo.
A chamado do próprio Raoni, muitas etnias
se reuniram aqui para discutir os problemas dos povos originários. Não são
poucos.
Grande pesquisador da Amazônia,
Paulo Moutinho me disse algo que não esquecerei: o futuro já chegou ao Xingu, a
região está 50 anos adiante quanto aos efeitos do aquecimento global.
De fato, há rios secando, rios que se tornam intermitentes, e o belo Xingu também sofre com hidrelétricas, poluição do garimpo e da extensa plantação de soja.
Estamos entrando num dos mais severos El
Niños da História. Temo pela Amazônia. Ouvi a história de um velho cacique para
quem o barulho de folhas secas pisadas são uma novidade. Na infância ele nunca
o ouviu; daí o medo de grandes queimadas.
Quando fui deputado, procuramos estudar o
El Niño e indicar algumas medidas para atenuar seu impacto. Passou muito tempo,
e parece que agora o El Niño vem que vem bravo.
Os jovens indígenas são combativos e
manejam a internet. Raoni chamou um grande encontro no Xingu também para passar
o bastão. Ele anda pelos 94 anos, e outros líderes também envelheceram. Os
jovens e as mulheres parecem estar prontos para conduzir o processo. Aliás, as
mulheres já estão no Ministério dos Povos Indígenas, na presidência da Funai e
no Parlamento.
Sei que falar de indígenas nem sempre é
fácil. No passado, os editores não gostavam, e os políticos associavam usar
cocar a ter anos de azar.
Mas há algo que as pessoas precisam saber.
No Xingu, por exemplo, 16 etnias evitam que os efeitos climáticos devastem mais
a região com consequências para toda a humanidade.
Seria interessante pensar também como as
pessoas que menos devastaram o planeta são as que mais sofrem, sobretudo vendo
desaparecer a água, seu recurso vital. As mudanças
climáticas são injustas, mas aqui no Xingu sentimos o peso
dessa conclusão.
Algumas figuras, sobretudo a corrente
política que esteve no poder, acham que os indígenas deveriam se integrar à
sociedade.
Às vezes, os males que marcam seu corpo
nascem do encontro conosco. Em alguns lugares, a cachaça destrói o fígado; em
outros, os refrigerantes e biscoitos impulsionam a obesidade, diabetes e a
pressão alta.
Lembro-me do romance do querido Antônio
Callado em que o personagem Nando se preparava para uma romântica viagem
revolucionária e se perguntava o que se leva na mala para o Xingu. Aconselharia
uma dose de realismo, algum repelente e se preparar para o calor, que já é
muito intenso no inverno. O curso da vida foi duro com o coração do Brasil.
Ainda bem que existem as imagens para
mostrar como é bom passar por aqui. Elas mostram a beleza que ainda existe.
Para mim, essas viagens são um encontro com o passado. Há 34 anos, participei
do Encontro de Altamira, um protesto contra a construção da usina de Belo
Monte. Raoni estava lá, documentei seu encontro com Sting, conheci Anita
Roddick, dona da The Body Shop. Os sobreviventes de muitas lutas estão por
aqui. Roberto Smeraldi, a quem conheci no enterro de Chico Mendes, e quase
fomos espancados por fazendeiros no aeroporto de Rio Branco. O grande amigo dos
indígenas Sydney Possuelo, a quem consulto regularmente. Acabo de falar com uma
japonesa que ajuda os caiapós há 30 anos e mora em Tóquio. Talvez esse encontro
seja para nós também apenas a renovação da esperança numa luta que, certamente,
transcende os limites de nossa vida.
Não se pode falar em grandes vitórias.
Apenas isto: o coração ainda bate.
O pulso ainda pulsa.
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