sexta-feira, 28 de julho de 2023

Flávia Oliveira - Verdades inconvenientes

O Globo

Polícia Civil e MP-RJ empacaram na investigação sobre mandante e motivação do assassinato de Marielle

Nesta semana, quase cinco anos e meio depois da execução da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, o Brasil foi levado de volta à noite de 14 de março de 2018, às horas que antecederam o crime, aos dias seguintes. A entrada da Polícia Federal no caso, que deu na delação premiada do ex-policial Élcio Queiroz, confirmou a autoria do duplo assassinato e, sobretudo, descortinou a dinâmica de operação e a cadeia de conexões dos assassinos de aluguel no Rio de Janeiro. Só muita cumplicidade de autoridades e agentes da lei manteria atividade tão macabra quanto numerosa por tanto tempo oculta, disfarçada, livre.

Élcio Queiroz contou que Marielle estava jurada de morte muitos meses antes da quarta-feira em que foi emboscada minutos depois de sair de uma reunião com jovens negras na Casa das Pretas, no Centro da capital fluminense. Teria ouvido de Ronnie Lessa, o PM reformado que puxou o gatilho de dentro do carro que o cúmplice dirigia, sobre uma tentativa frustrada em fins de 2017.

A informação surpreendeu a família e pessoas próximas à vereadora. Confirmada, põe por terra uma hipótese que o Ministério Público incluiu na denúncia apresentada contra os autores, em 2020. Lessa teria começado a pesquisar, a partir de fevereiro de 2018, parlamentares contrários à intervenção federal na Segurança Pública do Rio, decretada naquele mesmo mês pelo então presidente Michel Temer. O interventor era o general Braga Netto, mais tarde ministro da Casa Civil e da Defesa de Jair Bolsonaro, eleito em outubro de 2018. Marielle fora escolhida relatora da comissão instalada na Câmara de Vereadores do Rio para acompanhar e fiscalizar a intervenção, duas semanas antes de ser executada.

Réu por duplo homicídio triplamente qualificado (motivo torpe, emboscada e recurso que dificultou a defesa da vítima), tentativa de homicídio contra a assessora Fernanda Chaves e receptação, assim como Lessa, Élcio Queiroz tentou se livrar da imputação de premeditação ao declarar que foi convocado para o crime na própria data da execução. Na delação, ele aponta Maxwell Simões Correa — um ex-bombeiro de patrimônio elevado já condenado por obstrução de justiça e ora preso em Brasília — como o parceiro original de Lessa no monitoramento a Marielle.

Há verdades na delação de Élcio Queiroz, todas elas muito inconvenientes para o Estado do Rio. O governador Cláudio Castro, por sinal, era colega de Marielle na Câmara Municipal. Ambos foram eleitos em 2016 para o primeiro mandato como vereadores. Tomaram posse em 2017. Na campanha de 2018, Castro foi eleito vice-governador na chapa com Wilson Witzel, que estava num palanque com os também bolsonaristas Rodrigo Amorim e Daniel Silveira quando quebraram a placa de rua em homenagem à vereadora assassinada.

O governador, que substituiu Witzel, afastado por impeachment, e foi reeleito em primeiro turno no ano passado, não errou ao mencionar numa rede social que foram policiais fluminenses que chegaram ao nome dos dois assassinos de Marielle e Anderson. Mas é verdade também que tanto a Polícia Civil quanto o MP-RJ empacaram na investigação sobre mandante e motivação, perguntas até hoje sem respostas. A esperança ressurgiu com a entrada da PF no caso, por determinação do ministro da Justiça, Flávio Dino. Ao ser empossado, diante de Anielle Franco, irmã de Marielle e hoje ministra da Igualdade Racial de Lula, ele disse que esclarecer o assassinato era “questão de honra”.

Detalhes da noite do crime foram confirmados pelos investigadores em oito elementos de corroboração, incluindo o motorista do táxi que levou os dois assassinos do local onde deixaram a arma, no Méier, até a Barra, nas proximidades do condomínio Vivendas da Barra, onde Lessa vivia até ser preso e onde o ex-presidente Jair Bolsonaro também residiu, antes de chegar ao Planalto. São elementos que ratificam a autoria e levarão à condenação de Queiroz e Lessa no tribunal do júri. No Instituto Marielle Franco, a expectativa é que o julgamento ocorra ainda neste ano, independentemente dos benefícios pela delação. Lessa já é condenado em segunda instância na Justiça Federal por tráfico internacional de acessórios de armas e no TJ-RJ por comércio ilegal de armas.

O relato de Queiroz, apenas no Anexo 2, o único de teor conhecido, escancara o modus operandi da indústria da morte no Rio. Envolve agentes da lei tornados criminosos, monitoramento e campana das vítimas, descaracterização e posterior destruição de automóveis usados nas execuções, comércio de armas extraviadas de instalações policiais ou contrabandeadas, destruição de provas, execução de testemunhas e cúmplices, pacto de silêncio. É uma rede que alcança autoridades, maus policiais e bombeiros, grupos civis armados da milícia e do tráfico de drogas.

Afora a elucidação sobre mandante e motivo do assassinato de Marielle, Dino afirmou que o novo eixo de investigação renderá “desdobramentos sobre conexões e funcionamento do crime organizado no Rio de Janeiro”. A morte de Marielle já resultou em inédita luta por justiça e representatividade de mulheres negras nos espaços de poder político. Pode dar, segundo o historiador Atila Roque, ex-diretor da Anistia Internacional Brasil, no inquérito de maior impacto sobre relações do crime e das milícias com o poder do Estado. Nas palavras dele, “quase um segundo tempo da CPI das Milícias”, aquela que projetou (e pôs em risco) o então deputado estadual Marcelo Freixo, com quem Marielle atuou na Alerj por uma década.

 

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