domingo, 16 de julho de 2023

Luiz Carlos Azedo - O iliberalismo não morreu com a inelegibilidade de Bolsonaro

Correio Braziliense

No Brasil, o iliberalismo emergiu com a crise de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018

A agenda social-liberal está órfã no Brasil. Foi substituída por um projeto iliberal no mandato de Jair Bolsonaro e ainda não foi plenamente assumida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja política tem viés nacional-desenvolvimentista, evidente na política externa e na política industrial. Para neutralizar o iliberalismo, a gestão de Lula precisaria consolidar outro viés, a de um governo de ampla coalizão democrática, com uma política de integração competitiva à economia mundial e agenda social universalista, mas com foco nos mais pobres.

Uma terceira alternativa, com esse caráter social-liberal, não é possível na atual conjuntura, mesmo que alguns desejem, por falta lhe uma liderança de projeção nacional e base social articulada. Essa disputa está se dando dentro do governo Lula e não fora dele.

O que existe de alternativa de poder fora do governo são lideranças que surgiram na aba do chapéu do ex-presidente Jair Bolsonaro, principal representante do iliberalismo na política brasileira, porque sua base eleitoral continua influente, articulada e identificada com uma agenda autoritária. Com a inelegibilidade do ex-presidente da República, sentenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), muitos acreditam que a ameaça à democracia deixou de existir. É um equívoco.

No momento, a mais eloquente demonstração de que o projeto iliberal não está morto é a questão das escolas cívico-militares. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), liderou o movimento para manutenção das escolas, depois da manifestação do Ministério da Educação (MEC), pedagogicamente correta, de que esse modelo de escola é anacrônico e autoritário.

“Fui aluno de colégio militar e sei da importância de um ensino de qualidade e como é preciso que a escola transmita valores corretos para os nossos jovens”, disse o ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro. Hoje, há 13 unidades em São Paulo.

Outros doze estados decidiram manter o modelo, na maioria dos quais Bolsonaro venceu as eleições passadas. Há duas razões para isso, uma é o comprometimento ideológico com o projeto iliberal, como fica claro nas declarações do governador paulista; o outro, a pressão da base eleitoral do ex-chefe do Planalto.

Como na defesa da proibição do aborto, da posse de armas e da pena de morte, o senso comum leva muitas pessoas a acreditarem que a formação militar nas escolas com fins civis garantirá o futuro e a segurança de seus filhos. Quais são os “valores corretos”? Os professores de nossas escolas públicas não têm esses valores? É preciso a presença de ex-militares nas salas de aula para isso? O principal problema da qualidade das escolas públicas são a falta de recursos e a desvalorização dos professores, de abertura para novos conceitos pedagógicos.

Modernidade líquida

O iliberalismo no Brasil não é um projeto político descolado da nossa realidade e do mundo. A revolução digital, a crise de representação dos partidos e as mudanças nos costumes, com o fim da antiga “sociedade industrial”, estruturada em classes sociais definidas, geram muita perplexidade e insegurança na sociedade. Na chamada “modernidade líquida”, conceito do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, principal característica de nossa época, as relações sociais, econômicas e de produção são “frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos”.

O iliberalismo é uma das faces políticas dessa nova sociedade. Na “modernidade líquida”, o indivíduo molda a sociedade à sua personalidade, por seu estilo de vida, padrão de consumo e comportamento. A mobilidade geográfica é muito maior, as migrações ocorrem por necessidade ou oportunidade, a competição econômica aumenta, os salários diminuem, o emprego é inseguro, novas profissões surgem e muitas desaparecem. Uma pessoa ter o mesmo emprego por toda a vida é quase impossível, exceto para funcionários públicos de carreira. E aí que surge o reacionarismo, o desejo de voltar a um passado idealizado, imaginário, para ter mais segurança.

E o projeto iliberal? Esse conceito surgiu para caracterizar os movimentos e os partidos que combatem a democracia por dentro. Ganhou muita força no Ocidente durante o governo de Donald Trump, porque chegou ao poder nos Estados Unidos. O que separa a democracia liberal do iliberalismo é a falta de respeito pelas instituições independentes e pelos direitos individuais, principalmente.

No Brasil, o iliberalismo emergiu com a crise de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018. Em todo o mundo, lideranças iliberais combatem os valores democráticos, disputam o poder dentro das regras do jogo e, quando vitoriosos, atuam contra as instituições democráticas. É o que ocorre na Hungria, na Rússia e na Turquia; mais recentemente, na Itália e na Espanha. E foi o que assistimos nos quatro anos de governo Bolsonaro.

A expressão “democracia iliberal” (“illiberal democracy”, em inglês) apareceu pela primeira vez em 1997, em um ensaio publicado na revista “Foreign Affairs” pelo jornalista e cientista político americano Farred Zakaria, um crítico da cultura de cancelamento na esquerda.

No ensaio, Zakaria chamou de democracias iliberais os “regimes democraticamente eleitos e com frequência reeleitos ou mantidos no poder por meio de plebiscitos, que ignoram que seus poderes são limitados constitucionalmente e que destituem seus cidadãos de seus direitos e liberdades básicos”.

 

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